É um daqueles livros que, para bem do espírito subversivo e do pensamento autónomo, merecia ser de leitura obrigatória. Escrito em 1849 por Henry David Thoreau, “Desobediência Civil” (Ideias de Ler, 2021) é um ensaio contra a injustiça, a opressão e que levanta o dedo do meio, quando tal se impõe, aos atropelos dos governos, mesmo quando democraticamente eleitos.
Um ensaio que, numa modernidade onde o fosso entre os mais ricos e os mais pobres foi alargado, o planeta se pôs em fanicos, o racismo e a xenofobia cresceram a olhos vistos e a radicalização religiosa aumentou, mantém toda a actualidade. Ainda que, em 1849, tenha sido escrito “como forma de expor os motivos que o levaram a recusar-se a pagar impostos – o que lhe custou várias ameaças e mesmo uma noite na cadeia”, motivado por “leis injustas que promoviam a escravatura ou que financiavam uma guerra entre os Estados Unidos e o México” – como se lê na nota do editor.
Em Thoreau, o conceito de desobediência civil tem no cerne a defesa do direito à luta pacífica pela liberdade e a honestidade – algo que Gandhi irá, mais tarde, beber como inspiração -, trocando os tumultos ou actos violentos pela coragem de defender a liberdade, a igualdade, a justiça e a paz.
Para o autor e filósofo norte-americano, “o melhor governo é o que não governa” – ou, dito de outra forma, aquele que menos interfere na vida dos governados. A proposta de Thoreau não é, porém, a da supressão do governo ao estilo de uma anarquia, mas antes o estabelecimento de um melhor governo, a partir da noção de individualidade: “Eu penso que primeiro devemos ser homens e só depois súbditos”. Um governo que o povo deverá respeitar não pela lei mas pelo sentido de justiça.
Entre 1846 e 1848, os Estados Unidos e o México travaram uma guerra, no seu tempo chamada de «guerra do executivo», devido ao facto de o Presidente Polk ter iniciado as hostilidades sem a declaração do Congresso, indo ao encontro de motivações económicas e expansionistas, obtendo territórios nos quais a escravatura pudesse ser considerada legal. Foi esta a grande luta de Thoreau neste ensaio, apontada para fora do papel, num apelo à desobediência civil e ao abandono da zona de conforto da sociedade americana de então: “Este povo tem de acabar com a escravatura e com a guerra contra o México, ainda que essa decisão lhe custe a existência como povo”.
Não deixa de ser curioso que, num tempo onde a tecnologia de ponta era ainda uma miragem, as coisas fossem já tão semelhantes à efervescência sem bolhas das redes sociais, numa ira e revolta que não vai para lá do clique: “Há milhares de pessoas que, em teoria, se opõem à escravatura e à guerra, mas na prática nada fazem para acabar com elas. Pessoas que, considerando-se filhas de Washignton e Franklin, ficam sentadas de mãos nos bolsos, dizendo que não sabem o que fazer e nada fazem. Pessoas que antepõem à questão da liberdade a questão do comércio livre e que, depois do jantar, se sentam a ler tranquilamente o rol dos preços correntes, a par das últimas notícias sobre o México, acabando por adormecer sobre o jornal. Qual é, actualmente, o preço corrente de uma pessoa honrada e patriota? Essas pessoas hesitam, lamentam-se e, por vezes, fazem abaixo-assinados, mas nada fazem de sério e de eficaz. Esperam, muito satisfeitas, que outros remedeiem o mal e, assim, terminem com os seus lamentos. Quando muito, darão o seu voto fácil e saudarão os que praticam o bem quando passarem por eles”.
A fechar este apelo à desobediência, Thoreau embrulha tudo com um manguito em forma de laço ao Estado, recusando a lealdade e a simpatia: “Como desejo ser tão bom vizinho como mau súbdito, nunca me recusei a pagar o imposto sobre as estradas; no que respeita às escolas, contribuo com a tarefa de educar os meus compatriotas. A minha recusa não tem nada que ver com pagar um determinado imposto. O que eu não quero é prestar lealdade ao Estado, o que eu quero é distância, é manter-me o mais longe possível dele. Ainda que pudesse fazê-lo, não me dou ao trabalho de seguir o percurso do dinheiro que paguei, a ver se serve para comprar um ser humano ou a espingarda para o matar (o dinheiro é inocente), mas interessa-me conhecer as consequências da minha lealdade. À minha própria maneira, serena, mas efectivamente, declaro guerra ao Estado, ainda que, como é costume nestes casos, continue a servir-me e a extrair dele todas as vantagens possíveis”. Quem nunca saiu de uma repartição de finanças com este espírito, que atire a primeira pedra.
Sem Comentários