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“Desertar” | Mathias Enard

Por Isabel Daires · Em 17/01/2025

Utopia vs. realidade, ou a brutalidade da guerra vs. a racionalidade da matemática. São estas as dicotomias que o multipremiado autor francês Mathias Enard opõe em “Desertar” (Dom Quixote, 2024), em duas narrativas marcadas por estilos bem diferentes.

Começamos por nos deparar com a personagem de um soldado anónimo que foge da guerra, em nome de uma sobrevivência que é mais do que física, abrigando-se na cabana da montanha onde outrora ia com o pai cultivar a terra. O seu fluxo de consciência é-nos revelado numa escrita altamente sensorial, pontuada por evocações da infância e invocações religiosas. Julgamos poder situá-lo na Europa do século XX, mas não há referências espaciais ou temporais explícitas.

Em oposição, não falta contextualização à linha narrativa para a qual transitamos no segundo capítulo. Aqui, são-nos fornecidos nomes, lugares e datas. Sabemos que a narradora se chama Irina e é historiadora da matemática, filha de um matemático genial, Paul Heudeber, que foi um comunista fervoroso, sobreviveu ao campo de concentração de Buchenwald e morreu em circunstâncias controversas. A partir da recordação de um colóquio de homenagem ao pai, interrompido pelo ataque terrorista contra as torres gémeas do World Trade Center, Irina, já com 70 anos, entre o fim de uma pandemia e o início de uma nova guerra na Europa do século XXI, organiza intelectualmente a história dos pais. Afinal, trata-se também da sua história, bem como da do século XX, ao qual não se consegue arrancar.

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Através de Irina, acedemos às belíssimas cartas de Paul à mulher amada, a enfeitiçadora Maja, guiado por um amor que atravessava o Muro de Berlim. Enquanto ela se dedicava à política na Alemanha Ocidental, ele preferia permanecer em Berlim Oriental, ambicionando ajudar a transformá-la na “metrópole da utopia”, até a queda da República Democrática Alemã lhe deixar apenas as superfícies utópicas da matemática – a mesma ciência que o ajudou a sobreviver a Buchenwald e que, como “um véu pousado sobre o mundo”, oferece refúgio contra o desabar da esperança num mundo melhor.

A incerteza que a matemática moderna aceita é tudo o que temos se procurarmos um ponto de contacto entre as duas narrativas alternadas. No entanto, isso não impede que lhes apontemos algo em comum. O soldado desertor não consegue escapar a uma guerra que está “sobre ele, nele, à volta dele”. O seu esconderijo é perturbado pela chegada de uma mulher que também foge da barbaridade humana e que parece saber mais sobre ele do que nós alguma vez saberemos. Por sua vez, Irina, que não consegue deixar de pensar nas camadas de História enquanto se desloca pelo mundo, é devastada pela descoberta de uma traição antiga, que a faz ver tudo contaminado pela mentira. Nenhum dos dois escapa ao passado. Talvez todos estejam ligados, como uma sequência numérica nem sempre óbvia, pelos “meandros do passado que projetam as suas luzes até às profundezas do futuro”.

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Isabel Daires

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