“Consegui ver isso. Refiro-me a ver mesmo. Desenhei-o, com aqueles abismos brancos na fronteira com o Kentucky onde a menina Pereira me tinha levado certa vez. Como nunca vira o centeio a crecer, desenhei-o como se estivesse à espera do tabaco. Posso dizer o mesmo do livro do Charles Dickens, um estrangeiro que já morreu há que tempos, mas, cum caneco, se ele percebeu como as crianças e os órfãos são intrujados e toda a gente se vborrifa para isso. Poder-se-ia pensar que ele era destas bandas.”
A referência a Charles Dickens surge na página 441 de “Demon Copperhead” (Suma de Letras, 2023), romance assinado pela norte-americana Barbara Kingsolver que levou para casa o Prémio Pullitzer – ex-aequo com “Confiança”, o magistral romance de Hernán Díaz. Dickens e o seu “David Copperfield” são, aliás, a inspiração maior para este extraordinário romance, onde seguimos as pisadas de um jovem que diz ter desempenhado uma parte importante no seu próprio parto – “a pior parte do trabalho ficou por minha conta, enquanto a minha mãe, por assim dizer, se mantinha a leste” – e que, desde o princípio, teve a condenação a pairar sobre a sua cabeça: “Se uma mãe está deitada sobre o seu próprio mijo e frascos de medicamentos enquanto dão uma palmada na criança que ela expulsou, dizendo-lhe para se manter viva, é provável que o sacaninha esteja condenado”.
Com Dickens, Kingsolver partilha uma mensagem de cunho político e a preocupação com as classes mais baixas e necessitadas, contando uma história de sobrevivência individual que é, também, a denúncia do impacto dos opiácios no tecido social de uma comunidade dos Apalaches ou um olhar sobre os Serviços Sociais, muitas vezes condenados a falhar o golo de baliza aberta – isto por não haver bola para jogar. Há, porém, um humor fora de série que a coloca numa divisão diferente da de Dickens, juntando-se a essa atmosfera o vernáculo contemporâneo – “Se o leitor fica admirado por uma mãe discutor dotes físicos de namorados com um rapaz que ainda anda a aprender a não tirar macacos do nariz, é porque não conhece as profundezas da solidão”.
Nesta odisseia que envolve trabalho infantil, famílias de acolhimento ou escolas que não constariam dos rankings de mérito, Barbara Kingsolver escreve sobre a ideia e a construção de uma família, os trilhos sinuosos da amizade, a descoberta do amor, o poder transformador da arte ou o mundo próprio que a ruralidade esconde, num livro esperançoso sobre o tumulto da existência que tem tudo para ser um clássico dos tempos futuros, bem ao estilo Dickensiano. Muito bom.
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