“Delírio Total” (Vogais, 2017) esteve para ser o quarto romance de ficção do escritor e jornalista alemão Norman Ohler. O tema do uso de drogas na Alemanha nazi surgiu ao autor por acaso: o seu amigo Alex Krämer, irreverente DJ, contou-lhe que os nazis eram ávidos consumidores de drogas duras.
Ohler achou que havia ali uma história para contar. Começou a desenhar os personagens e a visitar inúmeros arquivos, em busca de documentação da época. O manancial de informação fê-lo mudar de ideias em relação ao que iria escrever – em vez de um romance, seria um livro de não-ficção a explorar este material explosivo.
De facto, na Alemanha dos anos 30 era normal ir a uma farmácia aviar heroína para a tuberculose, ou cocaína para o alívio das dores. A droga mais generalizada era o Pervitin, um potente opiáceo que conhecemos hoje como metanfetamina – era vendido como comprimido mágico contra a depressão e o cansaço, recomendado inclusive para as donas de casa com pouca energia. Havia até bombons de chocolate com metanfetamina.
Não demorou muito até o exército nazi perceber que um comprimido que retira a necessidade de dormir poderia ser muito útil para os soldados. Ao que parece, o exército e a força aérea alemãs compraram mais de 35 milhões de comprimidos na primavera e verão de 1940, para serem distribuídos massivamente na invasão da França.
O livro debruça-se também sobre a relação de simbiose entre o sanguinário Adolf Hitler e o seu médico Theodore Morell. O roliço Doutor Morell foi nomeado médico pessoal de Hitler em 1936, e sê-lo-ia até ao fim da vida do torcionário. Começou por injecções de vitaminas mas, ao longo do tempo, foi acrescentando substâncias cada vez mais estranhas e perigosas: hormonas animais, extractos de testículos de touro, fígados de porco e, finalmente, opiáceos como o Eukodal, cuja substância activa é a potente oxicodona.
Ohler detém-se nas muitas contradições da História: desde logo como o fanático Hitler, vegetariano feroz, defensor da abstinência e abnegação em favor da pátria alemã, se transformou lentamente num junkie decadente; e como o ideal nacional-socialista de pureza de corpo e raça escondia um mundo de devassidão, abuso de drogas e cruel desprezo pela vida humana.
É visível a pesquisa meticulosa feita pelo autor, o que não impediu que alguns historiadores tenham vindo a terreiro contestar as elaborações de Ohler: o uso de Pervitin provavelmente não era tão generalizado como se faz crer no livro, e há alguns momentos muito cinemáticos passados no interior do bunker de Hitler que usam de liberdade criativa sem base documental.
Ohler já disse que usou uma visão deliberadamente distorcida para dar ênfase a este aspecto mais desconhecido da segunda guerra mundial: “Escrever sobre História nunca é apenas ciência,” afirmou, “também é sempre ficção”.
Seja como for, o livro retrata um período histórico amplamente estudado sob uma perspectiva pouco usual. Além disso, a escrita de Ohler é escorreita e cativante, o que confirma “Delírio Total” como uma proposta altamente recomendável.
Sem Comentários