Debaixo da sentença de morte que foram as trincheiras e a frente de batalha da Primeira Grande Guerra, David Diop narra, em “De Noite Todo o Sangue é Negro” (Relógio D’Água, 2021), o horror, o delírio e a condição humana dos soldados, destacando uma história em particular: a dos senegaleses “importados” para a frente de batalha, por serem naturalmente mais resistentes e corajosos. Dois deles, Alfa Ndiaye e Mademba Diop, são irmãos por escolha própria (irmã de alma, como no título original), uma união nascida na infância e que persistirá mesmo após a morte.
“(…)Mademba me suplicara três vezes que acabasse com ele, que eu me mantivera surdo às suas três suplicas, que fora inumano por obediência às vozes do dever.”
Esmagado pela dureza da guerra, mas mais ainda pela traição com que considera ter prevaricado naquela noite com o seu mais que irmão, Alfa vai consumindo-se, desumanizando-se a cada noite que passa. Guiado pela escuridão, expia os seus demónios pela força bruta da violência, numa carnificina que alimenta a selvajaria e os desejos de vingança contra o inimigo. Mas quem é o inimigo? Rapidamente, quem o acolhia passa a condená-lo e deseja ver-se livre dele, que confundiu bravura com barbárie, tão própria da sua natureza e origem.
“Ao observar os olhos azuis do inimigo, costumo ver o medo, costumo ver o medo e o pânico da morte, da selvajaria, da antropofagia. Vejo nos seus olhos o que lhe disseram de mim e aquilo em que acreditou sem nunca me ter encontrado“.
Alfa converte-se num aniquilador voraz, um selvagem por reflexão, mas as suas reflexões e acções ambíguas confundem-no num delírio, pois procura entender até que limite, na guerra, a loucura é aceite ou se torna assunto proibido e sinónimo de fraqueza.
“Pela verdade de Deus, é necessário estar-se louco para se irromper, uivando como um selvagem, do ventre da terra. As balas do inimigo da frente (…). A loucura temporária permite esquecer a verdade das balas. A loucura temporária é irmã da coragem na guerra. Mas quando alguém dá impressão de estar louco todo o tempo, constantemente, sem pausas, então passa a meter medo até aos seus amigos de guerra(…).
Pela verdade de Deus, que no campo de batalha não é senão a loucura passageira que querem. Loucos de raiva, moucos de dor, loucos furiosos, mas temporários. Não loucos contínuos. Assim que a ofensiva acaba, cada um deve arrumar a sua raiva(…).”
Na sua loucura tão própria, arruma a sua raiva com as mortes requintadas que provoca e espelha-se nele outra realidade: a do trauma e abandono a que os soldados são condenados. A da dor e culpa que não se arruma, porque a busca por sentido em todo um processo sem sentido não apazigua nem alimenta qualquer sentimento de pertença. A trajectória da guerra, guiada pelas altas patentes – também aqui personagens -, mostra ainda que o soldado é um bem temporário e descartável, e o indivíduo per si (quase) não importa.
Alfa e Mademba eram um – o eu confunde-se, teatraliza-se e dissipa-se no trauma, no medo, no desconhecido e na amputação herdada da guerra, mas também na difícil tradução que é escutar e representar o outro, porque outrora foram um só naquilo que representavam: o Senegal na guerra. Agora, seguem como um todo que luta pelo reconhecimento do testemunho que quer traduzir a dor de todos.
“Mas aquilo que experimentamos é sempre novo porque cada homem é único, como é única cada folha de uma mesma árvore. O homem partilha com os outros homens a mesma seiva, mas alimenta-se dela de modo diferente. (…) Por isso, para nos orientarmos na vida, para não nos perdermos pelo caminho, é necessário escutar a voz do dever. Pensar demasiado por nós mesmos é trair. Aquele que compreende este segredo tem boas probabilidades de viver em paz. Mas nada é menos seguro.“
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