O ano é incerto. Numa sociedade americana futurista, os livros foram proibidos e os bombeiros, agora, metamorfosearam-se em agentes do fogo, encarregues de queimar qualquer livro que encontrem à temperatura de 451 Fahrenheit. Foi este o cenário imaginado por Ray Bradbury em 1953 na distopia “Fahrenheit 451”, que olhava para a supressão das ideias e da instalação de ditaduras através da queima de livros, semeadores de ideias incómodas para quem pretenda governar num regime totalitário.
Quatro anos antes, George Orwell havia publicado “1984”, um dos livros seminais da história da literatura, onde o individualismo e o pensamento independente eram condenados e onde os artigos de jornal, documentos e, se quisermos, toda a história, eram rescritos de acordo com a vontade do Grande Irmão.
Saltemos agora até Luanda, apontando o ponteiro da máquina do tempo para o mês de Junho de 2015. Nesse mês, um grupo de activistas angolanos estava reunido numa livraria a discutir um trabalho de Domingos da Cruz baseado em “Da Ditadura à Democracia” (Tinta da China, 2015), da autoria de Gene Sharp. Acusados de terem sido apanhados em flagrante delito e em conspiração contra o governo, foram presos pela polícia angolana, num caso que tem feito correr muita tinta e que, aos olhos do mundo, tem mostrado o rosto anti-democrático de Angola, país onde a liberdade de expressão chega sempre em dias de São Nunca à Tarde.
Ainda em 2015, a Tinta da China assumiu a responsabilidade de publicar este “livro maldito”, garantindo a cedência dos direitos de autor por parte de Gene Sharp. Todas as receitas da venda desta edição foram cedidas aos presos políticos e às suas famílias, que vivem, na sua maior parte, em graves dificuldades económicas.
Escrito em 1994, “Da Ditadura à Democracia” acabou por se tornar, no século XXI, um manual prático para a mudança de um sistema político, visando a transição pacífica de uma ditadura para uma democracia. Por muito que se folheiem estas páginas, porém, não se encontram esquemas ou desenhos de bombas nucleares ou sequer links para videos que ensinem a construir bombas ou armas, o que vem sublinhar ainda mais a resposta que José Eduardo Agualusa deu a Luvualu de Carvalho quando este referiu, num debate televisivo, que estávamos diante de “um livro altamente subversivo”: “Concordo consigo. É um livro altamente subversivo, mas em regimes totalitários. Não é subversivo em democracias. Este livro não leva ao derrube de democracias”.
O livro apresenta 198 métodos não violentos que visam o derrube de uma ditadura, e que vão da greve de fome à revelação da identidade dos agentes secretos ao serviço dos regimes. Sempre com uma espécie de aviso à navegação: o de que a utilização destes métodos, ainda que não violentos, poderá trazer para dentro de cada um a violência alheia de quem ao regime está ligado. Um dos anexos finais lista, de forma sucinta, esquemática e clara, todos estes métodos, dividindo-os em tópicos como “Declarações formais”, “Comunicação com um público mais vasto”, “Representações em grupo”, “Pressões sobre os indivíduos”, “Teatro e Música” ou “Homenagem aos mortos”.
A edição da Tinta da China inclui também testemunhos de novos prisioneiros políticos sobre o livro, onde se encontrará, por exemplo, esta frase que resume todo o desejo de mudança e o espírito que Gene Sharp deixou impresso nestas páginas: “A visão é: pacificamente resistir, pacificamente ousar e inteligentemente planear. Acções simples, não violentas, quando inteligentemente bem usadas, podem inutilizar os paióis de toda uma nação.” Que os bombeiros, em Angola como noutros lugares onde existem ditaduras, nunca troquem o apagar de fogos pela queima de livros.
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