Ray Bradbury é, de entre os muitos escritores norte-americanos do século XX, um dos mais influentes e entusiasmantes. Alguém que, ao ver “Crónicas Marcianas” (Cavalo de Ferro, 2021) rotulado como um livro de ficção científica, preferiu falar de um livro nascido das memórias de tempos pré-adolescência: “São o rei Tut reerguido do túmulo quando eu tinha três anos, as Edas nórdicas quando eu tinha seis, e os deuses romanos e gregos de que me enamorei aos dez: pura mitologia”.
De acordo com Bradbury, que assina a introdução a esta nova edição da Cavalo de Ferro, este foi o livro onde encontrou a sua voz própria, depois de ter lido, aos 24 anos, “Winesburg, Ohio”, livro de Sherwood Anderson, que incluía “dezenas de personagens que passavam a vida em alpendres mal iluminados e sótãos sombrios”. Um livro que fermentou na imaginação de Bradbury, que o reinventou numa transposição para Marte, acabando por escrever algo único que começou como “uma série de pensées marcianos, «apartes» shakespearianos, reflexões errantes, longas visões nocturnas, sonhos deixados a meio antes da aurora”.
Com críticas que não foram além do mediano por volta de 1950, “Crónicas Marcianas” caiu nas boas graças de Christopher Isherwood, que tratou de apresentar Bradbury a Aldous Huxley, que o apelidou de poeta abençoado. Um epíteto que acerta na mouche, uma vez que Bradbury tem o poder de transformar cada emoção humana, seja ela atravessada pelo negrume ou banhada pela caridade, num poema intemporal.
Situado entre Janeiro de 2030 e Outubro de 2057, “Crónicas Marcianas” é um livro feito de fragmentos, um puzzle onde a obra de arte nos é revelada quando colocada a última peça. A história começa em Janeiro de 2030 com o casal Yela e Sr. K, metidos até ao pescoço num casamento infeliz. Yela acaba por sonhar com Nathaniel York e Best, vindos do terceiro planeta “numa coisa metálica que brilhava ao sol”, trauteando canções por magia numa língua estranha. Uma história sem final feliz, onde o leitor fica a conhecer a primeira expedição enviada de Terra a Marte.
Esta é, aliás, uma história pela busca de um lugar e de um sentido para a vida, com muita telepatia, hipnose, memória e imaginação à mistura – e, claro, poesia. Bradbury mostra-nos a tendência humana para a destruição e o lucro, para criar classes e hierarquias, mas acima de tudo revela-se um profeta a vários níveis. Para além da antecipação da colonização, ironizando que “qualquer pessoa com um mínimo de bom senso desejaria fugir da Terra” na iminência de uma guerra nuclear, parece ter também previsto que chegaria um dia o tempo em que a Historia seria reescrita e se instalaria uma política do cancelamento, fazendo do aqui e agora o único caminho a seguir, levando à fogueira parte da história humana – lembram-se do que aconteceu em 2019 no Canadá?
“Os livros dele – de Poe – de Lovecraft, de Hawthorne, de Ambrose Pierce, e todas as histórias de terror, fantasia e horror, bem como todas as histórias sobre o futuro, foram queimados. Impiedosamente. Aprovaram uma lei. Oh, começou por ser algo quase insignificante. Em 1999, era um grão de areia. Começaram por censurar os livros de banda desenhada. Depois passaram para os policiais e, claro, para os filmes, desta ou daquela inclinação, de um grupo ou de outro, guiados por parcialidades políticas, preconceitos religiosos, pressões dos sindicatos. Havia sempre uma minoria que receava alguma coisa e uma grande maioria com medo do escuro, do futuro, do passado e do presente, com medo de si mesmas e das suas próprias sombras.”
Porém, apesar do colapso iminente e da tendência da História em repetir todos os seus erros, Bradbury transforma o falhanço numa nova oportunidade, oferecendo-nos um século extra para mudar o nosso destino. Um clássico, escrito em 1950 para os dias de hoje.
1 Commentário
[…] “Crónicas Marcianas” | Ray Bradbury: Tocante, a forma como este artigo consegue evitar a profunda relação de Bradbury, e deste livro específico, à ficção científica. É de notar que os textos deste livro surgiram nas páginas das revistas pulp de ficção científica. Bem como o puxar à erudição, interpretando o lado fragmentado das histórias que o compõem como experimentalismo literário, quando na verdade se insere no fix-up, uma forma dos editores no dealbar da edição a baixo custo em livro de bolso aproveitarem contos originalmente editados em revista, para os coligir e empacotar como romances. Mas percebe-se, afinal Bradbury está a ser reeditado por cá pela Relógio de Água, editora respeitável que não se mete nos ghettos sombrios da Ficção Científica. É um pouco essa a irritação, o recuperar de autores que merecem o reconhecimento como grandes escritores, por um mainstream editorial e crítico que, pela sua aversão às literaturas de género, fogem ao máximo ao reconhecimento das suas origens. […]