“Isto, deixa que o confesse, atinge (uma palavra que eu preferiria evitar, mas não posso) a alma. Põe em causa a noção colectiva de alma. Há qualquer coisa que se quebrou. Para além da raça. Para além da cor ou da história. Há qualquer coisa que se fragmentou e já não se consegue reconstruir.”
“Isto”, a que se refere Duyole Pitan-Payne – uma das figuras principais de “Crónicas do Lugar do Povo Mais Feliz da Terra” (Livros do Brasil, 2022) –, é o grau de barbárie que normaliza a morte atroz de um cidadão incauto às mãos de uma turba enlouquecida, sedenta do sangue de qualquer bode expiatório que lhe permita libertar os seus piores instintos, seja qual for a acusação. O cenário onde isto se passa é a Nigéria, país natal do autor, Wole Soyinka, activista político duas vezes preso por oposição ao governo e vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1986.
Neste retrato aterrador de uma democracia falhada, traçado com um humor negro desconcertante, sobressaem duas faces do mal: um político sem escrúpulos e um guru religioso, representantes da aliança de conveniência entre os poderes temporais e espirituais, em nome da ambição e da manutenção do poder. O capítulo a que tem direito a biografia do segundo, desde os tempos de jovem criminoso em fuga, até à sua auto-reinvenção como “engenhoso e criativo traficante espiritual”, é um dos melhores do livro, não só pelo sarcasmo que o impregna, mas também pela forma como integra referências aos dramas que assolam vários países africanos.
Por oposição a esta parceria iníqua, o autor oferece-nos duas personagens que se destacam pela independência de espírito, pelo humanismo e pela ética profissional: o já referido Pitan-Payne – engenheiro formado na Europa, que conquista por mérito próprio um lugar de consultor na ONU – e o cirurgião Kighare Menka, seu inseparável companheiro dos tempos de escola, que um dia recebe a visita de três empresários que almejam recrutá-lo para colaborar no abastecimento de um centro comercial de partes de corpos humanos destinados a rituais – talvez uma alegoria de um mundo onde quase toda a Humanidade está à venda.
Quando pensamos que a narrativa fragmentada vai convergir na investigação da teia que explora este negócio macabro, ocorre uma mudança de rumo. Na segunda parte do livro, a partir de uma morte, o autor foca numa família a lente com que antes examinara uma sociedade, sendo os dois níveis de corrupção, micro e macro, unidos pelas revelações do último capítulo. A intriga criminal não chega a desenvolver-se, servindo antes para alimentar a sátira política e social, que constitui o ponto forte deste romance complexo. Num meio onde a suposta elite é mantida em estado de alienação por uma “cíclica histeria de festas em série”, enquanto proliferam abusos de poder, fraudes eleitorais e crimes abomináveis, frequentemente motivados por superstições e tradições desumanas, as vozes críticas tendem a ser prontamente silenciadas. A esperança escasseia nestas páginas, mas talvez possamos encontrá-la na coragem de Soyinka.
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