Na página 156 de “Crónicas de Jerusalém” (Devir, 2024), livro escrito e ilustrado por Guy Delisle, uma das personagens dá conta de um acontecimento menos feliz. Estávamos então em 2011, longe de imaginar o cenário actual: “O exército israelita bombardeia Gaza neste preciso instante. Nunca se viu nada assim desde 1948. Mais de oitenta aviões lançaram-se ao assalto hoje de manhã!”. O livro, que levou para casa o Prémio para Melhor Álbum de Banda Desenhada em Angoulême (2012), nasceu do ano em que Guy Delisle e a família se instalaram em Jerusalém durante um ano, acompanhando a esposa numa missão humanitária em Israel.
À semelhança de livros como “Shenzhen” (ler crítica), “Pyongyang” ou “Crónicas da Birmânia”, publicados também com o selo da Devir, Guy Delisle oferece-nos um livro de viagem ilustrado e com um marcante vínculo pessoal, onde há bastante humor e um olhar para lá do turístico, seja sobre a realidade política, social ou cultural dos sítios por onde passa.
Depois de se instalar, momento a que está sempre ligada alguma incerteza e ainda mais sorte, Guy Delisle conta-nos o que vê no seu primeiro passeio a pé: “Passeios inexistentes, ruas esburacadas, carros estacionados por todos os cantos e um calor sufocante”. Esse lugar situa-se na parte Oriental de Jerusalém, uma aldeia árabe anexada em 1967 a seguir à Guerra dos Seis Dias. Para outros, esse lugar é na Cisjordânia, naquilo que se deveria hoje chamar-se de Palestina. “Há sempre fronteiras”, lê-se a certa altura.
Nesta belíssima edição de capa dura, Guy Delisle partilha aquilo que encontrou num ano de vivência em Israel: o muro que serve de separação e fronteira serpenteante – “não pensava que fosse tão alto”; os check points, o Ramadão e os colonatos; o papel desempehado pela Machsom Watch, uma organização israelita contra a repressão sistemática feita sobre os palestinianos; o Yom Kippur, o Sabat dos Sabats; os bloqueios de estrada e a divisão clara entre o espaço de cristãos e o espaço dos muçulmanos; os bairros ultradoxos, “um mundo à parte. Há quem nunca saia do bairro senão para ir ao Muro das Lamentações”; o Santo Sepulcro, cuja gestão é partilhada por seis comunidades religiosas; Hebron, uma cidade dividida em duas metades; os Pogroms e os terrorismo.
Para além do olhar sobre o que o cerca, Guy Delisle dá a esta novela gráfica um cariz muito pessoal, falando do seu processo de trabalho, dos lugares escolhidos para desenhar, das relações estabelecidas com os vizinhos, da dinâmica familiar criada durante um ano de incerteza, “um ano de bons e leais serviços”. As ilustrações são, como Delisle nos tem habituado, incríveis e precisas, notando-se um toque de mestre para o pormenor, seja no traço das personagens como, sobretudo, no modo como desenha edifícios, objectos e paisagens. Um olhar pessoal e transmissível sobre um lugar sob brasas há demasiado tempo.
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