Ryszard Kapuściński (1932-2007), jornalista polaco, foi correspondente de imprensa em diversas partes do mundo, incluindo o Médio Oriente, a América Latina e África, onde acompanhou a guerra pela independência de Moçambique até 1974. O livro “Cristo com Carabina ao Ombro” (Livros do Brasil, 2021), publicado pela primeira vez em 1975, na Polónia, reúne reportagens que enviou daquelas três regiões do globo e que contribuíram para que fosse considerado um dos grandes mestres do jornalismo moderno, eleito em 1999 o melhor jornalista polaco do século XX e distinguido, em 2003, com o Prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades.
O título do livro remete-nos para um quadro do pintor argentino Carlos Alonso, cuja imagem de Cristo com uma carabina ao ombro se tornou um símbolo do guerrilheiro que, nas palavras de Kapuściński, “combate a violência e a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os seres humanos”. É em nome desse ideal que o autor, em vez de assumir uma posição neutra, pratica um jornalismo de causas, empenhando-se em denunciar situações de opressão, num estilo de escrita que não precisa de floreados para ter uma poesia própria.
A primeira secção do livro resume bem a questão da Palestina e as razões pelas quais “todos andam cegos de ódio e vêem inimigos em todo o lado”. Mas a segunda secção, dedicada a alguns países da América Latina (Bolívia, El Salvador, Haiti, República Dominicana e Guatemala), será talvez a mais surpreendente para a maioria dos leitores, pois os meios de comunicação de massas familiarizaram-nos mais com os conflitos no Médio Oriente do que com os regimes ditatoriais americanos, lançando sobre eles um manto de silêncio que o autor critica.
O texto acerca da Guatemala, que ocupa grande parte do livro, seria considerado uma sátira demasiado exagerada, se fosse apresentado como ficção. Infelizmente, a realidade descrita, desde a independência nacional até à data de redacção do texto, é uma sucessão de horrores, envolvendo uma justiça kafkiana, actos de puro terrorismo apoiados pelo Estado e um desprezo geral pelo povo, não faltando estratégias de regimes estrangeiros, sobretudo dos EUA, para expandirem a sua influência política e o seu poderio económico, em detrimento do desenvolvimento social do país. Em comparação com as figuras sinistras que aqui são apresentadas, as personagens do General Alcazar e do Coronel Tapioca, concebidas por Hergé para “As Aventuras de Tintim”, que alternam no poder através de sucessivos golpes de Estado num país fictício da América Latina, parecem grandes estadistas.
A terceira secção do livro, sobre Moçambique, é mais curta, mas não menos interessante, pois o autor teve contacto directo com figuras cruciais do movimento de libertação dessa antiga colónia portuguesa, oferecendo uma perspectiva diferente dessa parte da História, que também é nossa.
As recordações de Moçambique permitem a Kapuściński concluir o livro com esperança no futuro, pela qual ficamos gratos. Ainda que as injustiças do mundo nos indignem, toca-nos a sua empatia, que transcende fronteiras nacionais, étnicas e religiosas.
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