“Criminalidade e Segurança” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019), da autoria de Manuela Ivone Cunha, é um ensaio singular, escrito para um público alargado e elaborado com uma clareza e clarividência muito interessantes. Um ensaio que prescinde, de forma inteligente e conhecedora, de longas notas de pé de página ou estatísticas e quadros profusos que dificultam a leitura.
A autora, doutorada em Antropologia com agregação em Sociologia, lança-se no estudo do mundo da justiça criminal, explorando os mitos, as crenças sociais e os efeitos que os comportamentos criminosos produzem nas sociedades – tais como a insegurança, o medo e a vitimização. Quanto ao crime, é analisado não apenas como um resultado de um défice individual ou de uma conduta amoral, psicopata ou sem empatia mas, igualmente, como um facto social.
Cativante é, também, o modo como explica a evolução da sociedade humana que, na mutação das mentalidades e do “dever-ser” social, inclui novos crimes no Código Penal (“nullum crime sine lege”), tais como o crime de incêndio florestal, crime de violência doméstica, crime de importunação sexual ou crimes contra os animais, “retirando” outros como a homossexualidade, o adultério, a pornografia com adultos, a prostituição, a mendicidade ou a vadiagem.
”Se é o crime que se teme ou o que se diz temer (…), não parece à partida descabido interrogar até que ponto as realidades do medo estão sintonizadas com as realidades da criminalidade, ou esperar que um aumento ou diminuição do medo corresponda a um aumento ou diminuição do crime”.
Os cinco capítulos centrais deste ensaio perscrutam e analisam: os muitos sentidos do crime -bastas vezes confundidos com fenómenos de marginalidade e desvio à norma; os muitos sentidos da (in)segurança, incluindo a insegurança dita “subjectiva”(eco individual ou colectivo dos factos), reflectida no medo e preocupação do crime e na percepção da gravidade de uma grande variedade de problemáticas sociais; o medo, contextos e tendências, incluindo os contextos domésticos, de violência entre pessoas próximas, a vulnerabilidade das mulheres e das crianças e idosos em contextos específicos; o crime, pois não há um retrato do crime mas vários, e a demonstração de que as estatísticas oficiais apresentam défices, pois não traduzem a criminalidade realmente existente (estatísticas prisionais, policiais e outras); criminalidade, sobretudo através do designado ”progresso civilizacional “, cada mais intolerante à violência que, na Alta Idade Média, consentia o espectáculo público de execuções no cadafalso e suplícios corporais, substituídos, na era moderna, por punições que apenas consentem a privação da liberdade numa espécie de “punição mais sobre a alma do que sobre o corpo”. Um retrato exemplar da evolução no tempo e da peculiaridade da criminalidade portuguesa no contexto ocidental.
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