Fruto da parceria entre Ed Brubaker e Sean Phillips, dupla que já nos havia oferecido a muito Chandleriana novela gráfica The Fade Out e a voluptuosa série Fatale, Criminal é um mergulho da prancha mais alta numa piscina de águas turvas, onde nadam o crime e as drogas e que revisita, sem perder o pé ou a noção da realidade, todos os clichés de um género maior.
Uma série que começou a ser originalmente publicada em 2006 e que, nessa primeira fase, se prolongou por 10 edições, que haveriam de ser publicadas em duas edições paperback: Coward (#1-5) e Lawless (#6-10). A segunda série começou em 2008 e decorreu durante sete edições, compiladas nos volumes “The Dead and the Dying” (1-3) e “”Bad Night” (4-7). Uma terceira série apareceu entre 2009 e 2010, em cinco números reunidos no volume “The Sinners”, seguindo-se uma quarta série em 2011, com quatro números reunidos em “The Last of the Innocent”. Já em 2017, Brubaker e Phillips publicaram “My Heroes Have Always Been Junkies” como história única, que apesar de não contar para as estatísticas como o volume 8 de Criminal passou também a fazer parte do seu legado. Já no ano passado, a dupla regressou com uma nova série Criminal, agora na Image Comics, que decorre na mesma Center City e partilha uma história criminal que vai sendo passada de geração em geração.
A boa notícia chegou a Portugal pela mão da G. Floy, editora que já havia publicado The Fade Out e Fatale (em cinco volumes) e que, por estes dias, nos está a oferecer – sempre em capa dura – todo este universo Criminal, sacado com muito esmero por uma dupla que parece ter à morte à perna e que gosta de habitar nas sombras de um mundo feito de tensão e conflitos maioritariamente interiores. Uma série que Brubaker terá definido, a certa altura, como “uma exploração do carácter de personagens que fizeram más escolhas, coisas terríveis, misturada com explosões de violência e crime aleatórias”.
“Criminal Livro Um: Cobarde/Lawless” (G. Floy, 2019) reúne as duas histórias que deram origem à série. “Cobarde” não poderia começar de forma mais cliché, apresentando-nos a Leo, um tipo discreto e super profissional, que parece andar à procura dos 15 minutos de fama prometidos por Andy Warhol. Para Leo, o mais importante é seguir as regras e não cair no mesmo erro do seu pai, um carteirista de excelência que morreu por falta de disciplina. Por regra, Leo apenas aceita um trabalho que considere ser seguro, sem grandes riscos, mas no dia em que o desafiam, como num concurso de mijo entre rapazes, a provar a sua valentia, poderá estar perto de dar o primeiro passo em falso. Em “Lawless”, quem domina a cena é Tracy Lawless, um bad motherfucker que, na altura de despachar alguém, o faz normalmente sem grandes pressas ou necessidade de deixar uma mensagem verbal ou escrita. Tracy escapou à vertigem da cidade ingressando nas forças armadas, mas quando, anos depois, regressa à cidade, decide investigar a morte do seu irmão, um ladrão e criminoso, apenas para se dar conta de que esta cena da família é mesmo tramada – mesmo quando já não há família por perto.
“Os Mortos e os Moribundos”, que abre o segundo volume da série intitulado “Criminal Livro Dois: Os Mortos e os Moribundos/Uma Noite Má” (G. Floy, 2019), é uma história a três actos, contada sob três pontos de vista diferentes que começa de forma reveladora: “Se querem saber a verdade sobre alguém, sobre quem são e de onde vêm e aquilo que são capazes de fazer, bom ou mau…têm de olhar para o seu passado”. No centro da narrativa está Danica Briggs, uma femme fatale que já conheceu dias melhores, e que sofreu na pele toda a crueldade do mundo. A ela se juntam dois amigos de infância com a amizade por um fio, tudo por causa de heranças familiares impostas e opções de vida mal tomadas. Uma espécie de Magnolia aos quadradinhos onde os mosaicos estão condenados a não ficar bem colados à parede.
“Uma Noite Má”, provavelmente a mais delirante das histórias da série, começa com uma citação de Leonard Cohen, também ele um tipo muito dado a gostar de se movimentar nas sombras: “O derradeiro refúgio de quem sofre insónias é um sentido de superioridade em relação ao mundo que dorme”. O rpotagonista dá pelo nome de Jacob, um ilustrador com um método de trabalho que parte sempre de uma migalha deixada de véspera: “Porque aquele última vinheta chama por nós… como uma frase inacabada”. Jacob tem a doença do não dormir, que em parte o ajudou a criar uma tira de BD chamada Frank Kafka Detective Privado, que tem sido o seu sustento nos últimos anos. Os seus dias de tranquilidade insone serão abalados quando, motivado por curvas femininas, a sua veia de ex-falsário começa a pulsar novamente, vendo-se atirado para um poço da morte constituído por algum sexo, muitas mentiras e violência a rodos. O final, esse, é digno de um dos melhores episódios da Twilight Zone.
História paralela do universo Criminal é “Os Meus Heróis Foram Sempre Drogados” (G. Floy, 2020), uma novela gráfica que chega em papel mate e propenso à texturização, amigo do espírito da aguarela e da tinta da china que habita esta história sobre Ellie, uma toxicodependente em reabilitação forçada que sempre teve uma ideia romântica sobre o mundo das drogas.
Desde a morte da sua mãe, também ela uma drogada, que Ellie tem feito o seu percurso através da música, tecendo elegias a discos como “Pet Sounds” ou “Hunky Dory”, forjados em boa parte graças ao empurrão de estupefacientes.
Numa clínica de reabilitação acaba por conhecer Skip, com quem ameaça viver um romance ao estilo de Bonnie & Clyde – mas aparentemente sem mortes. A missiva moral, se é que há tal coisa por aqui, será certamente esta: nunca, mas nunca se deve confiar num drogado. Uma história muito bem desenhada – no duplo sentido de argumento e ilustrações – que levou para casa o prémio Eisner para Melhor Novela Gráfica em 21019.
Nas livrarias está também já disponível o terceiro volume da série, que reúne as séries Os Pecadores + O Último dos Inocentes, de que falaremos por aqui em breve. Se há algo que poderemos dizer sobre Ed Brubaker e Sean Phillips é isto: a morte fica-vos tão bem.
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