Foi preciso Raymond Chandler, talvez o escritor de policiais menos policial, para que o género começasse a ser levado mais a sério – ou, pelo menos, com narizes menos levantados. Desde então – e antes disso, apesar de pouca gente ter ligado -, muitas foram as autoras e os autores que colocaram o policial no patamar mais alto da literatura, com tanto de sobressalto como de divertimento.
Em Portugal, porém, o filão nunca foi muito explorado, ainda que tenhamos tido gente como Dennis McShade – pseudónimo escolhido por Dinis Machado, o criador de uma série protagonizada por Peter Maynard, nome que surge como referência a uma personagem (Pièrre Ménard) de Jorge Luis Borges, que tinha uma forte tara por Dom Quixote -, Reinaldo Ferreira – mais conhecido por Repórter X, alguém com uma imaginação febril e um gosto pelo devaneio que se tornou o mestre do folhetim policial – ou, ainda, o mestre Fernando Pessoa – que, por entre os muitos heterónimos, ainda arranjou tempo para escrevinhar várias novelas policiais, compiladas pela Assírio & Alvim no livro “Quaresma, Decifrador – as novelas policiárias”.
Há, porém, uma invenção já com trinta anos – e a caminho dos 31 – que merece uma referência especial: Jaime Ramos. Ou, puxando dos galões, Inspector Jaime Ramos. Curiosamente, o livro que levou à criação de Jaime Ramos foi “Crime em Ponta Delgada”, onde quem dava cartas era então Filipe Castanheira, um tipo alfacinha mais virado para a melancolia. Algo que fez Francisco José Viegas mudar de direcção e pensar em Jaime Ramos, um tipo conservador vindo de uma cidade conservadora – Porto -, comunista desacreditado, sem problemas com o álcool ou com divórcios às costas, irónico, gozão e, muitas vezes, banal. A opção pelo Porto foi deliberada, no sentido de recusar as coisas óbvias. “Deu-me a oportunidade de construir uma melancolia própria, o meu coração está no Porto“. Personagem que, com o autor, partilha as origens transmontanas e os apetites gastronómicos.
Na recente – a 23ª – edição do festival literário Correntes d`Escritas, Francisco José Viegas não soprou o bolo mas convidou os leitores para a festa – numa conversa moderada pela jornalista e crítica literária Isabel Lucas -, prometendo novo livro de Jaime Ramos já para Maio deste ano, naquele que será o 10º volume das aventuras do inspector – e que, segundo um Viegas que não quis abrir o jogo, “começa no exacto lugar onde terminou “A Luz de Pequim”“.
“Escrevo esta série como se tivesse um contrato com Jaime Ramos“, disse, descrevendo-o como “uma pessoa mais desorganizada e preguiçosa do que eu“. E, se foi “Longe de Manaus” a fazer de Jaime Ramos uma celebridade, foi sem dúvida “Morte no Estádio” a mostrar ao escritor que “tinha ali uma personagem que queria construir“.
Depois de ser apanhado em falso por uma leitora numa apresentação do livro, que lhe relembrou, entre outras coisas, que Ramos conduzia não um Seat mas um Volkswagen, Francisco José Viegas decidiu fazer-lhe “uma ficha de leitura“, onde incluiu também a vertente gastronómica – que Viegas terá sacado a Manuel Vázquez Montalbán e ao seu Pepe Carvalho, que vivia através de uma moral duvidosa, demonstrava talentos de psicólogo e fraquezas como a gastronomia, e tinha uma certa inclinação para os favores fáceis de uma prostituta de nome Charo. Por falar em inspirações, Francisco José Viegas preferiu antes chamar-lhes “plágios assumidos“, referindo o criminalista Mandrake, velho conhecido dos leitores de Rubem Fonseca, ou Lorenzo Falcó, personagem arrancado às páginas de Arturo Pérez-Reverte, apropriações que vão de encontro à sua necessidade de brincar. Em resumo, “um empréstimo por absoluto respeito“, que mereceu o aval de Rubem Fonseca que, relativamente ao seu Mandrake, disse que Viegas tinha mostrado bastante – talvez demasiada – simpatia.
Desempenhando o papel de herói acidental – o chamado anti-herói -, que faz um pouco o papel de todos nós, Jaime Ramos, por omissão ou simplesmente preguiça, apresenta-nos a formas muito particulares de justiça, desmontando os pequenos defeitos do género humano. “Irrita-me a presunção de seriedade“, diz a certa altura Francisco José Viegas, que provavelmente não partilhará a ideia de que quem lê mangá – ou manga, na designação frutícola – não lê Proust. Afinal, sem os grandes sentimentos humanos não existe boa literatura policial – ou qualquer outra.
Em “Longe de Manaus”, Francisco José Viegas dinamitou as regras escritas do policial, deixando-nos então uma curiosa epígrafe: “Como se sabe o romance policial tem regras. Este não tem“. Há, ainda assim, uma regra a que qualquer escritor do género não poderá escapar: “Um policial tem de ter cadáveres“. Em Maio, veremos quantos se irão atravessar no caminho de Jaime Ramos. Inspector Jaime Ramos.
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“Morte no Estádio”, o livro que marca a estreia do inspector Jaime Ramos, chegou às livrarias numa nova edição com o selo da Porto Editora.
Fotos: Correntes d`Escritas
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