Bibliotecária, documentalista, investigadora, escritora. São muitas as ocupações e ainda maior o engenho de Raquel Patriarca (Benguela, 1974), doutorada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto com uma tese sobre a história do livro infanto-juvenil em Portugal, praticante da mediação da leitura para o público mais jovem, professora de futuros bibliotecários e arquivistas, de professores e de alunos pós-reformados. E, ainda, autora de livros sobre a História do Porto e de contos para a infância – o primeiro livro de poesia está também a caminho. Este ano, na 23ª edição do festival literário Correntes d`Escritas, Raquel Patriarca assumiu a curadoria das Correntes em Rede, uma iniciativa que, em conjunto com as Correntes nas Escolas, leva o espírito das Correntes à comunidade educativa, mostrando que, mesmo para o mais negacionista dos leitores, haverá sempre um livro à sua espera.
Assumiste nesta edição a curadoria das Correntes em Rede, um curso de formação para professores leccionado por Mafalda Milhões, Cristina Taquelim, Ondjaki, Afonso Cruz e Margarida Fonseca Santos. O que pode este tipo de formações trazer de novo às salas de aula, sobretudo ao nível do ensino e do gosto pela leitura?
O Correntes em Rede é uma iniciativa paralela às Correntes d`Escritas que, em conjunto com as Correntes nas Escolas, direcciona a actividade das Correntes para a comunidade educativa. O objectivo é, por um lado, levar a língua portuguesa, a criatividade e a criação artística intimamente ligada a literatura – mas não só –, a uma população na qual vivem os leitores do futuro. Por outro, infiltrar nas escolas, de forma subtil, o gosto pela literatura: sem gramática, sem sintaxe, sem narradores heterodiegéticos, sem andarmos à procura do complemento oblíquo. A ideia é fruir da leitura, da escrita, da criatividade, abrindo portas em vez de as fecharmos. Nas Correntes nas Escolas, o objectivo primário é o de aproveitar a vinda de autores de vários pontos do país – e de países –, com vários sotaques, tons e temperaturas da língua portuguesa e da cultura ibero-americana, levando essa massa crítica – e esse momento único – às escolas. Quando vão às escolas não existem regras. Trata-se de retirar os escritores dos palanques e de os pôr a falar em igualdade de circunstâncias, levando o espírito das Correntes para dentro das salas de aula. Quando estamos a falar com professores, há ainda mais barreiras para deitar abaixo. É preciso desconstruir ideias de escalonamento, de graus de qualidade de leitura, substituindo-os por variedades e diversidades de leitura. Mais do que focar as atenções no avaliar da proficiência e da fluidez da leitura dos alunos, trata-se aqui de abrir aos professores novos horizontes de trabalho que permitem a exploração de novas formas de leitura. Porque, na verdade, todos temos uma capacidade inata para ler. Nós lemos o mundo todos os dias a toda a hora, lemos o que se passa à nossa volta, lemos o rosto das pessoas, lemos uma situação. Quanto mais lermos, mais capacidade teremos para o fazer. Não precisamos é de ler sempre da mesma maneira. Quando construímos este programa, uma das preocupações era essa: abrir novas perspectivas para as mesmas coisas. Estamos a falar de uma questão de conhecimento, e aí reside a nossa aproximação à formação de professores, entendendo o conhecimento não como uma questão de posse mas antes da sua procura. É a procura que o torna interessante. Dessa forma, pegámos em três matérias centrais – a narrativa oral, a escrita e a leitura -, e procurámos novas abordagens.
Os professores que participaram eram essencialmente da disciplina de Português?
A organização das Correntes em Rede conta com o apoio e a gestão administrativa – e até o apoio logístico – da Rede Nacional de Bibliotecas Escolares e da Rede de Bibliotecas Escolares da Póvoa de Varzim, são parceiros íntimos, e sem o empenho destes professores e de um conjunto grande de colaboradores da Câmara Municipal em funções nos diversos espaços onde se realizaram as iniciativas, nada seria possível. Foram eles que criaram contacto, inscreveram, reuniram e acolheram professores de todas as áreas temáticas e de vários graus de ensino: professores primários, educadores de infância, professores do secundário, até professores bibliotecários que, neste momento, podem ou não ter turmas. Podemos fazer imensas actividades nas bibliotecas escolares sem necessariamente recorrer à literatura de ficção – ao romance, ao conto ou a histórias infantis –, ligando-os à biologia, ao estudo do meio, à matemática, à astronomia. Podemos, por exemplo, conhecer o Darwin, que era um grande choninhas e falava com as tartarugas. Todas as matérias são possíveis de trabalhar, de forma criativa, nas bibliotecas. As inscrições foram também abertas para professores fora do agrupamento geográfico da Póvoa, de Vila do Conde e áreas limítrofes, embora fisicamente a maioria dos professores veio de perto. Mas tivemos também professores que vieram de Vila da Feira ou de Braga.
Como nasceram as Correntes em Rede?
Este projecto nasceu com o Luís Carmelo. Foi ele quem lançou, em 2019, o primeiro desafio à Manuela Ribeiro, tendo assumido a curadoria em 2019 e em 2020. Depois da pausa de 2021, coube-me a mim a missão este ano. Espero que no próximo ano o Luís assuma de novo a curadoria, até para eu poder fazer uma oficina (risos).
Como foi a dinâmica das Oficinas?
Abrimos cinco oficinas. A Mafalda Milhões fez as múltiplas leituras; a Cristina Taquelim a narrativa, o Afonso Cruz, o Ondjaki e a Margarida Fonseca Santos assumiram três diferentes perspectivas de escrita. O Ondjaki e a Margarida Fonseca Santos, por exemplo, mostraram a escrita em sistemas quase opostos – o Ondjaki partiu da situação de se ter apenas três horas para escrever um texto, enquanto a Margarida partiu do texto já escrito para pastorear as palavras, deixando tresmalhar algumas, indo à procura de outras, dando-lhes de comer, levando-as a passear. Foi muito bonito.
“Os périplos pelas escolas e pelas comunidades são talvez mais importantes do que as mesas que fazemos no Garrett. Lançam outro tipo de raízes, de sementes”. Disseste isto numa das sessões das Correntes Itinerantes, e também marcaste marcaste presença em sessões nas escolas. Como se trabalha para dois tipos de público tão distintos? O escolar, talvez mais moldável e sobretudo mais curioso, mas que tem à sua disposição uma série de propostas mais imediatas e visuais? E, do outro lado, um público adulto, afastado dos centros urbanos, talvez ainda mais desligado da literatura e menos dado a grandes revoluções?
No fundo, os temas abordados são os mesmos: a criatividade, a criação artística. Como é que, lendo, vamos fazendo uma série de adaptações automáticas, sem com isso estar a pensar em estruturar o pensamento ou em aprender palavras novas. A diferença está no contacto, na preocupação de perceber quem temos à nossa frente. Não se trata de simplificar o discurso, mas a mensagem passa melhor se tivermos a consciência e o respeito pelas pessoas para quem estamos a comunicar. Por vezes não é quem ouve que é desinteressado, é quem fala que se pode tornar numa criatura desinteressante. Isto porque, em última análise, está a falar consigo e não com os outros. Nas Correntes, as pessoas já são convidadas a despir a toga, a tirar o chapéu do intelectual. O fundamental é contactar com as pessoas de forma genuína.
Como participante e dinamizadora, que balanço fazes destas sessões de proximidade, e de que forma vês o capital desta edição a ser projectado para o futuro?
O balanço, parece-me, é muito positivo. Sei que as bibliotecas escolares da Póvoa fazem muitos convites a autores durante o ano, e que os recebem nas escolas. Talvez fosse bom replicar essa dinâmica das bibliotecas escolares nas freguesias em horário pós-laboral – as bibliotecas públicas têm isso como uma das suas missões. As itinerâncias são muito interessantes, no sentido em que a maior parte destas pessoas vive com a sensação de que existe o mundo dos intelectuais e dos livros, um mundo ao qual não pertence. A única coisa que precisamos de fazer é deitar abaixo esse muro. O resto já não é connosco, acontece naturalmente. E, quando estamos à frente de uma plateia, gosto de pensar que poderá estar ali, por exemplo, um poeta maravilhoso, que só precisa de um caderno, de umas canetas e de alguém que lhes mostre o caminho. Há grandes poetas da nossa língua que não nasceram em Lisboa, que não estudaram em colégios de intelectuais. Baltar, uma aldeia perto de Paredes, tem duas capelas, um cemitério, duas rotundas e meia dúzia de casas. Estou a exagerar, claro, mas foi lá que nasceu um dos maiores poetas portugueses do século XX: Daniel Faria.
“Devemos é trabalhar com aqueles miúdos que não gostam de ler”. Como mediadora de leitura, acreditas que há sempre um livro até para o mais negacionista dos leitores?
A Rosa Montero diz que toda a relação que temos com um livro é emocional. No momento da leitura, esse livro passa a morar em nós – e nós nele. É evidente que nos podemos apaixonar pela forma como o escritor encaixa as palavras, pela maneira em como viaja e em como traz essas viagens até nós. Mas, em última análise, aquilo que lá iremos encontrar somos nós mesmos. Acredito por isso que há-de haver um livro para cada um. Pode não haver um amor guardado para cada um, mas livros tem de haver. Não precisam é de ser apenas os livros obrigatórios. Quando abrimos as portas para outras formas de ler, para outros livros que não os canónicos, deixamos ao arbítrio de cada um descobrir que livro é esse – seja mitologia, banda desenhada, romance histórico, não ficção, biografia, literatura de viagens, livros de detectives, tanto faz. O importante é que cada um faça o seu caminho. Um caminho que é mais difícil fazer por escolha própria do que quando limitamos esse caminho aos livros obrigatórios. Quando não há escolha livre o processo é porventura mais fácil, mas também mais frágil. A escolha compromete o leitor e leva-o a crescer como tal.
Há algum favorito entre a gente miúda, capaz de entrar directamente para um top de livros a recomendar para quem não é lá muito dado a leituras?
“As Aventuras de Tom Sawyer”, por exemplo, e a ideia não é minha é do meu filho, é um sucesso garantido – sobretudo porque Tom Sawer não gosta da escola. Quando o professor se vira de costas, ele salta logo pela janela. Toda a sua vida é muito engraçada, porque está constantemente a aprender coisas muito valiosas em circunstâncias que lhe acontecem durante esse percurso de fuga da aprendizagem. O que faz lembrar aquela frase do John Lennon: a vida é aquilo que nos acontece quando fazemos outros planos. Seja como for, é um rapaz com quem os leitores resistentes facilmente se identificam, permitindo a tal relação emocional de que falava há pouco.
Fotos: Luisa Velez
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