No ano da comemoração do centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner, o maior festival literário do país, Correntes d’Escritas, comemorou também ele a marca relevante de vinte anos de edição.
Uma edição madura, sustentada no espírito visionário de uma equipa que se mantém, reconhecida e aplaudida; numa adesão e coesão sem muitos precedentes entre nós, entre escritores, editores, imprensa e público. Entre todos, muitos habitués desde as primeiras edições, que se referem às Correntes como um projecto seu, alimentado pela convicção de que é possível falar e partilhar a arte da escrita e da leitura com aquele despudor saudável dos que acreditam que o mundo, sendo redondo, pode ainda assim ser colorido pelos olhos, o verbo e a pena de quem o (pre)sente – haja atrevimento e vontade efectiva de promover o gosto pelo livro e pela leitura.
Nesta vigésima edição das Correntes, com um programa alargado entre os dias 16 a 27 de Fevereiro, continuaram a ser às centenas as pessoas que encheram cada uma das sessões no Cine-Teatro Garrett, desde as arriscadamente matutinas às mais tardias. Foram dias repletos de um público entusiasmado e entusiasmante, que não perdeu a oportunidade de dialogar com as mesas, aplaudir generosamente e contactar com os autores que permaneceram por ali, nas ruas, a desfrutar da complacência de um tempo cumplicemente aprazível e propicio ao mélico estar.
Longe parecem estar os anos iniciais em que os autores participantes eram poucos e o público escasso, apelando a presenças reciprocamente solidárias nas apresentações. Um bando de gente que acreditava no formato inédito da iniciativa, sem recear a improbabilidade do local e a descrença de alguns.
Este ano foram treze as Mesas, que entre os dias 19 e 26 de Fevereiro, servindo-se de versos da Sophia de Mello Breyner, reuniram mais de setenta autores dos mais variados estilos literários, provenientes de países de língua ibérica, num doce balancear entre linguarejares lusos e castelhanos.
“E as minhas mãos não podem prender nada”, do poema “Passam os Carros”, aliou poetas e deu o mote para a reflexão sobre o papel da poesia, levando João Rasteiro, Juan Vicente Piqueras, Francisco Duarte Mangas, Karla Suárez, Luís Cardoso e Teresa Duarte a destacar em uníssono a importância da humildade e da integridade criativa, protegidos do facilitismo das comunicações rápidas e erradamente fáceis das tecnologias e das redes sociais.
A memória, maravilhosa e tormentosa, guardiã que tantas vezes apetece silenciar, foi evocada pelo mexicano David Toscana e os lusos Bruno Vieira Amaral e Filipe Homem Fonseca, na Mesa “Não se perdeu nenhuma coisa em mim”, do poema “O Jardim e a Casa”. Que venha e vá, qual jogo de esconde-esconde, a memória, ou a sua falta, fonte de prazer, pelo que fica e pelo que se perde, num gozo despudorado de leitura e releitura.
Confirmando-se que nada fica ao acaso, a moderação de cada uma das mesas fez jus à sinfonia de estilos e artes. Moderações diferentes consoante os estilos e as áreas de proveniência de figuras como Rui Zink, Maria Flor Pedroso, João Gobern ou Marta Bernardes, garantes de discussões bem articuladas, doses de humor generosas e uma saudável picardia entre pontos de vista.
Miguel Sousa Tavares, como o próprio admitiu, talvez o mais (in)suspeito de entre os que reflectiam Sophia, deixou apelos e sacudiu mentes mais folgadas para a imprescindibilidade da incorporação dos clássicos nas leituras contemporâneas, condição para que se julgue possível passar ao passo seguinte da escrita. Na mesma linha, num diálogo que Hélia Correia qualificou como amoroso, Goretti Pina, Miguel Sousa Tavares, Joel Neto Manuel Rui, Mempo Giardinelli e Sandro William Junqueira impeliram à comunicação, à sedução e à descoberta da leitura e da escrita, sob o mote do verso do poema “Apesar das Ruínas”, E nunca as minhas mãos ficaram vazias.
Nas Correntes foram muitos os estilos das participações, umas deliciosamente tímidas e preocupadas com o público, outras já verdadeiras acrobatas na oralidade e no improviso.
Será a palavra sagrada, como disse Sophia no seu poema “Com fúria e raiva”? Na Mesa que teve o ensejo de o reflectir não existiram consensos, antes enleio entre os que se afirmaram preocupados em dessacralizá-la, democratizando-a, e os que se insurgiram contra algum despudor e uso demagogo da retórica. Pendente ficou a questão – e a sua resposta: estará a mentira nas palavras ou nas acções?
Tranquilizem-se os mais irrequietos, porque houve também espaço para vozes menos harmónicas, de alerta para os riscos do elitismo e da anomia. Em torno do verso Esta é a madrugada que eu esperava, extraído do poema “Este é o tempo”, agregaram-se Daniel Jonas, Rodrigo Guedes de Carvalho, Mário Cláudio, Milton Hatoum e Onésimo Teotónio Almeida, com as já habituais demonstrações de opinião sustentada em lucidez e humor.
Intervalando as Mesas, meia centena de livros foram lançados nas Correntes d’Escritas, em vinte e uma sessões, que revelaram novidades editoriais e confirmaram a chegada de sucessos editoriais já conhecidos noutras paragens. Exemplo disso, o espanhol Manuel Vilas, com o livro Em tudo havia beleza (Ordesa), em 2018 livro do ano em Espanha, e o brasileiro Milton Hatoum, com A noite da Espera, emocionaram com os seus relatos eminentemente autobiográficos, de perda e superação – autores que o Deus Me Livro entrevistou e cujas entrevistas chegarão aqui em breve.
Permaneceu fiel a feira do livro e a adesão de setenta espaços comerciais da cidade à venda de livros, entre roupas, sapatos, chocolates, joias, malas, garrafas, óculos, cafés e mercearias, à espera do leitor mais voraz ou incauto.
Por último, a referência ao prémio literário Casino da Póvoa, que este ano foi para Luís Quintais e o livro A noite imóvel (Assírio & Alvim, 2017), divulgado na abertura desta 20.ª edição das Correntes, numa sessão que teve a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, da ministra da Cultura, Graça Fonseca, e do Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, que preside actualmente à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Seguiu-se o reconhecimento de talentos mais jovens com a entrega, na sessão de encerramento, de diversos prémios infantis e juvenis, numa estratégia concertada de promoção e reconhecimento do gosto e treino pela leitura e pela escrita, a que a comunidade escolar e civil tem aderido.
No cômputo, conversas sobre escritos, livros e ideias, em Mesas multiformes, ditadas pela diversidade dos intervenientes, gente inquieta, de pensamento e verbo fácil e variado.
Chegadas às 20 edições, as Correntes d’Escritas continuam a ser aquele momento que deixa satisfeitos leitores, autores e a comunidade em geral, imune às vozes que advogam uma continuidade reinventada e a recriação de momentos ainda mais dinâmicos, menos colados à cadeira e à mesa. Se for mudar para estragar, que se deixe assim, por favor.
Fotos: Pedro Silva
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