Votar. Beber mais do que um mísero brinde. Ir à sala de jogos de cabeça levantada e sem medo. Levar a namorada a dormir em casa dos pais com orgulho e estilo. Estas são algumas das coisas que, com ou sem suporte legal – ou mesmo real -, nos passam pela cabeça quando é tempo de celebrar a maioridade.
É certo que as Correntes d’Escritas não precisavam de ter chegado às 18 primaveras para tudo isto mas, entre os dias 21 e 25 de Fevereiro, a Póvoa de Varzim acolheu, em clima de piquenique familiar, um desfile de egos de tamanhos diversos muito propício à celebração e à festa da literatura.
Do ponto de vista de quem assiste de fora e tem por missão um olhar crítico, poderia desejar-se que algumas das mesas tivessem menos intervenientes, mais conversa e alguma moderação, pondo de lado os discursos estudados e, por vezes, que actuam como um soporífero. Porém, mesmo neste estado aparentemente imutável, as Correntes são de longe o ponto alto do panorama dos festivais literários nacionais. Que o digam as dezenas de apresentações de livros, os muitos autores convidados – entre eles 30 estreantes – e as mesas num Cine-Teatro Garrett sempre bem-composto, sintoma de um evento que tem sabido, ao longo de quase duas décadas, cativar e levar à Póvoa quem gosta de ler e ouvir falar de livros.
Se, na sexta-feira, dedicámos o dia a conversar com Alberto Barrera Tyszka e Juan Gabriel Vásquez – entrevistas a publicar brevemente no Deus Me Livro -, sábado foi tempo de tomar o pulso às Correntes e assistir a duas mesas bem-postas, com títulos que davam para tudo: “De um jogo frágil de palavras se faz a literatura” e “Porque não há nada de tudo?”.
Na primeira brilhou Marta Bernardes que, depois de apitar para o início de uma leitura comentada entre a declamação poética e representação teatral, utilizou um jogo frágil de palavras – pobreza, ponto, cortina de fumo, leitura e mão-de-obra – para realizar um trabalho de colagem com muita alma, ironia, humor e erotismo, que terminou com um remate digno de um inspirado CR7: “O que não posso fazer com a mão faço com a língua”. Afonso Cruz aproveitou o embalo e, depois de nos deliciar com uma peregrinação à Antiguidade com o mito egípcio da oralidade – ou de ilustrar a palavra escrita entre remédio e veneno -, falou da boca como símbolo material da adoração, e da literatura como uma forma de beijo. Houve tempo ainda para um excerto de “A nossa vida sexual”, do Dr. Fritz Khan, que fez repensar aquilo que andamos a fazer com as nossas bocas. Já antes disso, o moderador João Gobern havia trazido palavras como nebulização ou “drop”, ele que mesmo com uma doença respiratória não deixou de vir às Correntes para moderar uma mesa e apresentar, de forma irrepreensível, o livro-monunemto de Juan Gabriel Vásquez. De um jogo frágil de saúde se fez a literatura. Grande Gobern.
A fechar as Correntes partiu-se de um verso de Daniel Jonas arrancado ao seu “Bisonte”: “Porque não há nada em vez de tudo”. Juan Gábriel Vasquez, que teria sido eleito o homem do jogo se as Correntes fossem um jogo da bola, falou de Conrad, Proust, Homero, Joyce e Kafka para ilustrar uma das missões da literatura: ir a um lugar obscuro, feito muitas vezes do nada, e voltar para contar, seja aquilo que aconteceu como aquilo que poderia ter acontecido. Um lugar de subversão, de rebeldia. Para último ficou o one-man-show e sempre desconcertante Onésimo Teotónio Almeida, que não deixou de contar um bom número de anedotas “anti-feministas” – como aquela em que um advogado, depois de confirmar que a razão para o seu cliente se querer divorciar da mulher é o facto de esta não lhe dirigir a palavra há cinco anos, lhe responde: “Você pense bem. É que mulheres como esta não há muitas no mundo”. Onésimo usou a história das Correntes para ilustrar uma viagem entre o nada e o tudo – das primeiras edições de salas vazias ao aparato actual – e, também, como trampolim para o tudo ou nada de Trump, antes de terminar com uma homenagem a João Ubaldo Ribeiro e a leitura de um poema de Marcolino Candeias. Política, poesia, amor e humor. Assim se fez a festa da maioridade.
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