“Corpo Vegetal” (Porto Editora, 2024), de Julieta Monginho, é um livro sobre a tomada de decisão, tendo por base os dilemas de uma mulher que se sente abusada mas que, por vários motivos, hesita em denunciar quem o fez. Desde logo, olha-se a ténue fronteira que continua a existir entre sedução e abuso, entre aceitação e consentimento na intimidade, reiteradamente ignorada, desvalorizada ou ridicularizada. Que direito tem um ser humano de se chegar a outro e de se valer do seu poder para confundir, intimidar e fazer valer a sua vontade? Vivemos num tempo apressado. Até na intimidade o mundo impõe intensidade, olhando com desconfiança para o tempo da sedução, da espera e da delicadeza, considerando-o um sinal de fraqueza.
Em “Corpo Vegetal”, Mimi, uma mulher perto dos cinquenta anos, retém memórias de uma vida nem sempre condizente com o que desejara. Resoluta, viveu sem medo de errar, algumas vezes ignorando as convenções. Os laços – consigo mesma – e a aceitação da vontade de continuar a errar, se tanto fosse condição de vida, conferiram-lhe verticalidade. Agora, procura encontrar coragem para denunciar quem violentou o seu corpo e a sua auto-estima, mas também afirmar-se perante quem, ao longo dos anos, subtilmente a aprisionou, recusando ser mais do que metade do que ela desejara – ou perante a família, que a arrastava para projectos que mais uma vez parecia desejar e recear. Tudo isto associado à presença na sua vida de três homens, com três perfis e papéis diferentes, mas todos causadores de confusão e ambivalência.
Julieta Monginho trata assuntos sérios e hediondos com uma dignidade exemplar, revelando o poder da cumplicidade entre as vítimas – que se lêem até nos silêncios, decifrando códigos que julgavam impossíveis –, as várias e incrivelmente improváveis formas de maltrato e abuso ou, também, as incrivelmente inspiradoras formas de reagir – até na não reacção.
A narrativa é ainda hábil na forma como evita o tom monocromático do auto-relato, que facilmente se poderia instalar se o tema fosse apenas o abuso vivido por Mimi, intecarlando este com considerandos sobre a escrita, os escritores e os tradutores, ou não fosse Mimi tradutora e o abusador mor um escritor. Explora ainda a família, os seus laços e vicissitudes, situando a protagonista no seu mapa relacional e afectivo e, ainda que ao de leve, a massificação do turismo, apresentando a vinda de um escritor famoso a Lisboa para revelar o impacto do turismo na cidade.

Tudo contribui para uma entrada em pleno na vida de Mimi, que engoliu o grito do abuso, engasgada pela surpresa, mas que ainda assim não teve dúvidas quanto ao mal que lhe ficou colado à pele. Fá-lo de forma ritmada, permitindo sentir a fluidez ou a altercação interior desta mulher que surge carregada de tanto realismo que nos impele a olhar para o lado e confirmar que não somos nós. Há, em “Corpo Vegetal”, uma dimensão paralela que se cruza com quem lê ou com quem se observa ao lado, na vida quotidiana de tanta gente esmagada pela procura de uma dimensão do afecto que poucos são capazes de dar.
Cair, correr, caminhar, recuar, voar e dançar, assim se faz o percurso de Mimi – e também a estrutura em capítulos do “Corpo Vegetal”, cada um deles correspondendo a uma etapa no processo de reconstrução da identidade desta mulher.
Julieta Monginho nasceu em Lisboa, com raízes no Alentejo. Em 1996, publicou o seu primeiro romance. Desde então seguiram-se diversos livros de ficção, participações em colectâneas de contos e colaborações com revistas. A sua obra tem sido premiada e reconhecida pela crítica. Exerceu funções como magistrada do Ministério Público, especializada na área de Família e Crianças, tudo contribuindo para a substância e sensibilidade que a sua escrita revela.
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