“O Progresso leva-nos na sua torrente. Lançados como estamos, qualquer interrupção seria um verdadeiro suicídio. Vitória! Vitória! A velocidade do nosso arrebatamento toma proporções de nevoeiro de tal modo admiráveis que mal temos ocasião de distinguir outra coisa que não a extremidade do nosso próprio nariz.”
Estas palavras, plenas de ironia, poderiam servir de crítica ao deslumbramento tecnológico a que assistimos em pleno século XXI, quando qualquer instituição que deseje ser considerada moderna se sente obrigada a criar pelo menos uma app, ao mesmo tempo que se multiplicam os debates em torno das esperanças e dos receios desencadeados pelo desenvolvimento da inteligência artificial. Porém, elas foram escritas no final do século XIX por Villiers de L’Isle-Adam (1838-1899), num dos 28 textos da colectânea “Contos Cruéis” (Cavalo de Ferro, 2023), publicada originalmente em 1883 e que ressurge agora em Portugal, numa nova tradução e pela primeira vez em versão integral.
A era em que este autor francês viveu foi marcada, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, pelo sentimento de crise civilizacional que então percorria a Europa, quando as inovações técnico-científicas contribuíam para abalar referências socioculturais e religiosas. Tal contexto foi certamente decisivo para a produção de contos precursores da ficção científica – os quais prevêem, por exemplo, o aproveitamento do céu para afixação de cartazes publicitários, ou a utilização de máquinas para evitar que as crianças sofram com a morte dos pais –, mas este livro contém muito mais do que os frutos do cepticismo quanto ao progresso. Por exemplo, o primeiro conto satiriza as convenções sociais a partir de um caso de relativismo moral, o segundo envereda pelo género fantástico quando o protagonista se recusa a aceitar a morte da amada, e o terceiro descreve a volubilidade das massas perante uma sucessão de regimes políticos, enquanto a miséria permanece.
O facto de o autor descender de uma família aristocrática arruinada, tendo passado grande parte da vida na pobreza, tê-lo-á dotado de uma sensibilidade social que provavelmente não abundaria na sua classe de origem. “Se as finanças diminuíam, aumentavam-se as dízimas, as talhas, as corveias, as ajudas, os subsídios, os sequestros, os impostos extraordinários e injustos e as gabelas, à discrição”, explica ele, na narrativa histórica “A Rainha Isabel”. A decadência finissecular dos meios nobres e burgueses, povoados por dândis e belas damas, alterna com referências a múltiplas injustiças, havendo ainda espaço para discorrer sobre a Arte, o comportamento dos artistas e a degradação da imprensa, ilustrada pelo conto “Dois Áugures”: “Qualquer jornalista verdadeiramente digno desse grande título não deve escrever senão de uma penada, seja o que for que lhe passe pela cabeça; e, sobretudo, sem se reler! Às três pancadas! E com convicções devidas somente ao humor do momento e à cor do jornal”.
Alternando entre géneros, dominando com a mesma mestria os discursos mais coloquiais e os mais rebuscados, é com uma crueldade cativante que o autor unifica estes contos – não se tratando aqui de um traço de personalidade, mas sim da impiedade com que analisa a comédia humana.
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