“Solowejczyk distendeu e prolongou esta última palavra. Era um “miseravelmente” que nunca mais acabava. E prosseguiu: – O senhor é uma pessoa que, nem mesmo eu – e, pela primeira vez, notei-lhe uma ponta de vaidade -, que nem mesmo eu – repetiu -, consigo ainda compreender bem. Recusa-se a aceitar dinheiro. Pretende resgatar os Rifkin. Uma coisa há que reconhecer: é talentoso. Mas não é perfeito. Como dizê-lo de outra forma? É ainda um homem; mas já é um canalha… perdoe-me a palavra, que não tem na minha boca um matiz
pessoal, apenas uma acepção “literal”. Revela, todavia, sentir paixões. Tem de se decidir.”
Inéditos entre nós, os livros de Joseph Roth começam a chegar às livrarias nacionais pela mão da Cavalo de Ferro. Neste “Confissão de um Assassino” (Cavalo de Ferro, 2018) – com o subtítulo relato de uma noite -, chega-nos uma revelação tão intensa quanto o período que se vivia em vésperas da Primeira Guerra Mundial. Um homem, com tranquilidade no semblante e na voz, assume: “Matei e, mesmo assim, considero-me um bom homem“.
A confissão pertence a Golubchik, que diz carregar o nome do príncipe Krapotkin, de quem afirma ser filho. Golubchik foi agente da antiga polícia secreta do czar, a Okhrana, tendo desempenhado o papel de espião e assassino, e disserta aqui sobre os complexos da identidade humana e a luta pela recuperação da ordem natural das coisas, sobre o reconhecimento e a redenção.
Com um estilo regrado, pausado e intenso, Roth denuncia o poder do equívoco, o fogo do ódio, da loucura e do amor, o teatro de uma justiça confundida entre a vida privada de um homem e os deveres ao serviço do Estado. Golubchik, que traduzido significa pombinho, sempre se penalizou por este nome fraco e jocoso e, a partir do momento em que trava conhecimento com um homem misterioso, de nome Lakatos, percebe que a deformidade reside nesse nome que tem carregado indevidamente.
Lakatos, o húngaro, tem como deformidade uma forma de coxear quase encantatória, ele que é, de certa forma, também estrangeiro – um húngaro é ainda menos europeu que um russo: “Com efeito, ele falava com uma pronúncia estrangeira. Percebi que não era russo (…). Não sei explicá-lo ao certo. No entanto, julgo que nós os russos nos sentimos quase sempre lisonjeados quando nos é dada a oportunidade de conhecer estrangeiros. E por “estrangeiros” queremos dizer “europeus”, aqueles povos que, sipostamente, são muito mais inteligentes do que nós, apesar de terem bastante menos valor. (…) Os húngaros eram tártaros que se tinham esgueirado para a Europa e aí haviam permanecido. Eram vassalos do Imperador da Áustria…“.
Com estas considerações sociais e políticas, poderíamos pensar que o livro se encaminharia para a espionagem e os crimes cometidos sob alçada da Okhrana. Porém, desde cedo o relato aponta para uma dimensão pessoal e privada: “– Nada disso! (…) Não sou, em nenhum sentido, uma figura dos meios políticos. (…) Sou um bom russo, (…), mas nunca compreendi totalmente os meus companheiros de juventude, com o desejo desesperado de darem a vida por um ideia louca (…). Acreditem quando vos digo que a vida privada de um homem, a sua simples humanidade, é mais importante, maior e mais trágica do que todas as questões públicas do mundo“.
Será dentro desta dimensão trágica e humana que encontraremos a primeira luta de Golubchik: uma luta por reconhecimento e identidade, que facilmente se despenha na ainda maior sede de vingança. “Não existe uma só lei que possa receber o qualificativo de benigna; e em nenhum lugar do mundo existe justiça absoluta“. Desacreditado na justiça e agindo como céptico, como desde novo se considerou, Golubchik procura o seu lugar num mundo onde a sua simples aparição possa mudar o curso das suas palavras e acções. Um lugar que chega com o desejo de ser polícia.
“E costumo rir quando ouço esta frase recorrente: «as acções em vez de palavras». Quão débeis são as acções! Uma palavra perdura, ao passo que uma acção perece. Um cão pode realizar uma acção, mas apenas um homem pode pronunciar uma palavra“. E essa palavra, polícia, bastou-lhe para seguir em frente, naquele que seria um caminho sem retorno e o conduziria até esta noite: a esta confissão.
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