• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Como Um Marinheiro Eu Partirei, Nuno Costa Santos, Elsinore, Deus Me Livro, Crítica
Mil Folhas 0

“Como Um Marinheiro Eu Partirei” | Nuno Costa Santos

Por Pedro Miguel Silva · Em 21/07/2023

Em 2016, com o selo da Quetzal, chegou às livrarias “Céu Nublado com Boas Abertas”, o romance de estreia de Nuno Costa Santos que dava continuidade a um percurso feito de livros – de poesia ou contos -, crónicas avulsas, aventuras bloguianas ou programas radiofónicos e televisivos. A partir de um livro do avô que descobrira numa estante – “um soldado esquecido” -, o autor ficcionou a história de um homem de regresso à sua terra, em nome de uma missão literária. Um livro feito de histórias e de tempos cruzados, atravessado por referências literárias e acompanhado por uma banda-sonora de eleição, que incluía Pink Floyd, My Bloody Valentine ou Jesus & Mary Chain. Sobre esse lado musical, o autor partilhou nesse mesmo ano em entrevista ao Deus Me Livro:

“Estou sempre a ouvir música. Ainda agora descobri uma banda de Manchester que me está a fascinar chamada Money, meio baladeira. Mas sim, os My Bloody Valentine fizeram parte da minha adolescência. Lembro-me de ter uma gravação em cassete que emprestei a um amigo que me disse que aquilo devia estar mal gravado. Também Jesus & Mary Chain, The Cure – muito – Joy Division, Bauhaus, B-52`s, mas coisas muito diversas como Meredith Monk, Michael Nyman, Wim Mertens, Miles Davis, Prince, muito daquele catálogo da 4AD, claro, que condiz na perfeição com a paisagem açoriana: como Cocteau Twins, Dead Can Dance, The Moon and The Melodies. Toda a minha vida insular foi cruzada pela música, e até já fiz um filme com amigos em que vou aos Açores buscar os discos que lá deixei, e que passam pelos Pixies, Stones Roses, Inspiral Carpets, Charlatans, nunca mais saía aqui. Mas vejo os discos como uma espécie de catálogo de amigos. A música para mim é tão importante como a literatura, só que nunca seria capaz de ser músico.”

Sete anos depois chega às livrarias este “Como Um Marinheiro Eu Partirei” (Elsinore, 2023), uma viagem com Jacques Brel, livro que regressa aos Açores, mantém o vinil a rodar em loop e que é, não sem alguma surpresa, uma dupla biografia de inquietações: a de Jacques Brel, na sua última curva existencial, mas também – e sobretudo – a do próprio Nuno Costa Santos, que desenha aqui um livro atípico, curto e musical, com tanto de romance como de ensaio (auto)biográfico.

Um livro que, tal como em “Céu Nublado com Boas Abertas”, arranca após um olhar curioso para a estante: “Sento-me à mesa do escritório e olho para a capa do último álbum de Jacques Brel, na estante, encostado nos livros”. Depois de um diálogo sonhado com Brel, a carta de intenções surge impressa na segunda página, no assumir de uma nova missão literária que implicará “carregar a tristeza das partidas”, “perseguir a estrela inacessível” ou “arder numa qualquer febre”. Uma odisseia pessoal que Nuno Costa Santos assume de pronto, qual Ulisses num exercício dado à catarse: “Não sei se serei esse herói, mas o meu coração ficará tranquilo”.

Por detrás desta aprumada construção narrativa está a decisão de Brel, então nos píncaros da fama, de abandonar para sempre os palcos, depois de num concerto ter repetido uma passagem da letra de Les vieux. “Como um homem envelhecido, enganou-se”. Aos 38 anos, Brel anuncia à imprensa e ao mundo o intempestuoso e prematuro ponto final, arrumado mais ou menos desta forma: “O quotidiano destrói tudo. É preciso ir ver”. Parte então, no seu iate, numa viagem sem regresso rumo às ilhas Marquesas, fazendo uma escala na Horta, Açores, onde atracou a 2 de Setembro de 1974), e que ficou registada de forma quase anónima num jornal local.

É esta a semente a partir da qual Nuno Costa Santos fará crescer este livro, dialogando com Brel como que ao espelho de um conto fantástico, interrogando-se sobre a demanda da paternidade – algo que para Brel era pura teoria – e, nesse exercício, descobrindo alguma paz interior e redefinindo, quem sabe, a própria amizade com Brel – um pouco como acontece com a maior parte das amizades de escola. Afinal, como pergunta a certa altura, “não será a biografia, para um escritor-biógrafo, uma forma de se apresentar através dos vestígios dos outros?”.

Como Um Marinheiro Eu Partirei, Nuno Costa Santos, Elsinore, Deus Me Livro, Crítica

Ao longo do livro, são várias as pontes criadas com o autor de “Ne me quitte pas”, como terem ambos partido como marinheiros ou de partilharem o mesmo registo melancómico – “Brel praticava, em modo maior, a sua gincana entre a tragédia e a comédia”. Há, pelo caminho, muitas notas, retratos e memórias de Brel, como o facto de este, quase sempre, ter sido visto como um misógino provocador, ou de Edith Piaff, de forma pouco abonatória, considerar inaceitável a sua postura de homem suplicante – ele sobre o qual disseram ter sido “o bobo da corte de uma geração”. Brel por quem o autor se apaixonou “pela música, vulcânica, na sua construção engenhosa feita de voz, performance, letras e arranjos. Pelos temas. O amor, a relação com os lugares, a amizade, sentimento maior e nem sempre fácil de encontrar nas artes com a verdade que merece”.

Para além da biografia, Nuno Costa Santos esmiúça também algumas das letras de canções de Brel, colocando-os em paralelo com a vida do músico, dando a este “Como Um Marinheiro Eu Partirei” uma certa nuance de Rei Lagarto, a mítica colecção da Assírio & Alvim dedicada à música – a antologia poética de Jacques Brel foi publicada no volume 11. Quase como começa, o livro termina desta forma (não é spoiler): “Um homem fuma um cigarro à proa de um iate, concentrado no som do mar”. Se esse homem for Nuno Costa Santos, talvez de seguida coloque os auscultadores e ouça estes versos, enquanto os olhos se perdem na linha do horizonte:

Comme un marin je partirai
Pour aller rire chez les filles
Et si jamais tu en pleurais
Moi j’en aurais l’âme ravie

Comme un novice je partirai
Pour aller prier le bon Dieu
Et si jamais tu en souffrais
Je n’en prierais que mieux

(…)

(Jacques Brel, La Haine)

Como Um Marinheiro Eu PartireiCríticaDeus Me LivroElsinoreNuno Costa Santos

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • A Mercearia Céu & Terra, Deus Me Livro, Crítica, James McBride, Dom Quixote, D. Quixote, Mil Folhas

    “A Mercearia Céu & Terra” | James McBride

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • A Mercearia Céu & Terra, Deus Me Livro, Crítica, James McBride, Dom Quixote, D. Quixote,

    “A Mercearia Céu & Terra” | James McBride

    13/05/2025
  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto