Por esta altura do campeonato, Ricardo Araújo Pereira (RAP) poderia estar a ler bulas médicas e ter diante de si salas lotadas, tal não é o magnetismo que o humorista português conseguiu criar ao longo dos anos, desde os primeiros e irrepetíveis tempos dos Gato Fedorento. Um estatuto que lhe permite escrever livros mais alternativos aos do formato crónica tradicional, como é o caso deste “Coisa Que Não Edifica Nem Destrói” (Tinta da China, 2023), primeiro de um díptico – o segundo já está também disponível nas livrarias – onde, como se lê na Advertência primeira, “fala-se desavergonhadamente de humor”.
Ainda nesta Advertência, RAP interroga-se – e ao leitor – se o facto de de falar do humor, e de todos os seus processos e mecânicos, não estragará em parte a sua magia. A resposta é dada mais à frente: “…isto do humor tem tanto de místico como qualquer outra forma de escrita – ou de trabalho. Nada”.
Para cada um dos capítulos – sete ao todo -, há um pequeno preâmbulo sobre o assunto sobre o qual o autor irá escrever. No arranque, por exemplo, “o autor discorre chatamente sobre a evolução semântica da palavra humor”, capítulo no qual aborda a designação antiga de humores – uma galhofa pegada -, o amor como a admissão de uma derrota ou a sempre pertinente diferença entre sorriso vs. riso, colocando defuntos e humoristas no mesmo plano existencial à boleia das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o imperdível livro escrito há várias vidas por Machado de Assis.
A partir daqui é sempre a subir: discorre sobre alguns mitos gregos, difamando Byron pelo caminho; aponta o casamento como a origem de várias tragédias, tudo para nos falar do humor como um espelho; escreve-nos uma receita para pouparmos uns trocos, uma vez que, apesar de ser um “remédio frágil e precário”, é mesmo o único que há disponível na farmácia; sobe a parada falando sobre “xixi e cocó”, desenhando uma hierarquia para o tópico e trazendo à conversa personagens tão incríveis quanto Rolando, o Peidão; diz-nos tudo sobre “cozinhar bebés”, numa receita que envolve uma piada de 2021, um panfleto de 1729 e um desenho de 2008, desenhando os limites do humor e referindo a indignação mascarada – ou, talvez seja mais correcto pô-lo assim, a falta de graça; fala da importância do timing da piada, acreditando que o humor pode ser treinado; disserta sobre moscas, a partir do livro “The Fly Trap”, de Fredrik Sjoberg; e, em jeito de despedida e já com a bateria no máximo, diz ser tempo de “bater em terroristas”, recuperando “uma lei medieval que dava a cidadãos ofendidos o direito de espancar e matar um determinado tipo de criminoso”.
O livro inclui ainda uma bibliografia muito útil, espécie de lista de supermercado gourmet para futuras (re)leituras. Uma pequena preciosidade, mais uma para juntar à já bem preenchida estante RAPiana.
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