Ler um bom romance de história alternativa é, ao mesmo tempo, uma experiência intelectual fascinante e uma lição de humildade, por fazer-nos sentir que o mundo em que vivemos, com tudo o que nele tomamos por garantido, resulta de uma sequência de eventos onde uma pequena variação poderia ter-se propagado pelo tecido do tempo e criado um presente bem distinto. A leitura de “Civilizações” (Quetzal, 2021), a última obra de Laurent Binet, vencedora do Grande Prémio de Romance da Academia Francesa, tem tudo para agradar aos apreciadores do género e a qualquer outro leitor.
O cerne da história é a inversão da relação entre a Europa e a América Central e do Sul. Sabemos que o espanhol Francisco Pizarro derrotou o império inca com apenas cerca de 200 homens. Mais de uma civilização daqueles a quem chamaram “índios” foi aniquilada pela inferioridade militar, pelas doenças europeias e pelo fanatismo religioso. O que teria sucedido se, em vez disso, a Europa tivesse sido “descoberta” por um grupo de menos de 200 incas?
O pressuposto que sustenta tal hipótese não é descabido. Vestígios arqueológicos encontrados na América do Norte dão fundamento às sagas escandinavas que descrevem a descoberta desse território. Binet limita-se a colocar um grupo de viquingues a viajar mais para sul, interagindo com tribos locais e trocando mercadorias e conhecimentos, incluindo o domínio do ferro, dos cavalos e de técnicas agrícolas, além da preciosa imunidade.
Séculos mais tarde, quando Cristóvão Colombo chega à América Central, numa arrogante demanda de ouro, pedras preciosas e pagãos para converter, é surpreendido pela capacidade destes de ripostar. Acabará os seus dias transformado numa espécie de bobo da corte de uma rainha cubana, ensinando a filha desta a falar castelhano, forçado a deixar aos nativos as armas de fogo e o que resta das embarcações.
Com um salto temporal de mais alguns anos, somos transportados para uma fratricida guerra civil entre os incas, que leva o Rei Atahualpa a fugir para norte com a sua corte e o que resta do seu exército. Em Cuba, sem nada a perder, partem com a princesa falante de castelhano para aquilo que consideram um Novo Mundo e desembarcam em Lisboa logo após o grande terramoto de 1531, o segundo mais destrutivo que já atingiu a cidade. Chegados a Espanha, deparam-se com tal hostilidade religiosa, em nome de um deus que consideram mau e indigno de veneração, que são levados a usar a astúcia e a força para evitar serem massacrados. Espanha cairá perante os incas e outros territórios se seguirão, em parte graças à exploração das suas rivalidades, tal como os europeus tiraram proveito dos diferendos entre os índios. Portugal, por seu lado, não se sairá mal.
O autor transita com mestria entre estilos literários, começando pelas sagas escandinavas, passando para o diário de Colombo e dedicando depois a maior parte do livro à crónica dos feitos incas, intercalada com epístolas trocadas entre várias personagens. Para os amantes de história, será um prazer encontrar nomes célebres, além de referências literárias que incluem citações de uma epopeia chamada “Os Inquíadas”, onde é fácil reconhecer a inspiração de “Os Lusíadas”.
Só um profundo conhecimento do passado permitiria subvertê-lo tão brilhantemente. Há também, na transformação dos colonizadores em colonizados, uma ironia que vinga aqueles que são vistos como perdedores da história, ainda que não lhes ofereça um destino seguro. Ao recriar a frágil cronologia da humanidade, Binet recorda-nos que ela é escrita todos os dias.
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