Este era um daqueles livros que, antes de chegar às livrarias, já meio mundo queria ler. Não por correr em jornais e publicações online que se tratava de um épico sobre Nova Iorque ou um livro que reinventava a literatura mas, antes, pelos valores envolvidos que mais lembravam o universo dos cifrões futebolístico. Garth Risk Hallberg, o jovem americano que se estreou no mundo literário com este “Cidade em Chamas” (Dom Quixote, 2015), recebeu a módica quantia de 2 milhões de dólares. A pergunta é inevitável e será levantada e respondida neste primeiro parágrafo: valerá “Cidade em Chamas” assim tanto dinheiro? Provavelmente não.
Apesar de ser um romance de estreia promissor, juntando ao engenho da escrita uma imaginação fora de série no que toca a cruzar e apresentar histórias dentro do livro – que surgem sob a forma de reportagens jornalísticas ou fanzines de inspiração punk -, este está longe de ser um livro assombroso, tal como o foram, só para citar dois livros recentes que aterraram vindos da mesma geografia – os Estados Unidos -, “Correcções” ou “Liberdade”, de Jonathan Franzen, ou, sobretudo “O Pintassilgo”, que confirmou Donna Tartt como uma das mais interessantes vozes literárias da actualidade.
Não é que Garth não mostre talento para a escrita ou qualquer medo de arriscar algo de inovador, mas a verdade é que, no meio destas quase mil páginas, há pelo menos duas centenas que poderiam ter ficado de fora, emagrecendo o romance e dele espremendo o verdadeiro sumo. Todas as personagens parecem andar à procura dessa coisa chamada alma e, muitas vezes, essa procura sobrepõe-se à acção, trazendo para o livro muitos momentos parados que nada acrescentam à história. A procura, essa, é uma constante do livro, com momentos como este:
“E começo a sentir, uma vez mais, que as linhas que compartimentaram a minha vida – entre passado e presente, exterior e interior -, se estão a dissolver. Que eu próprio posso ainda ser libertado.”
A trama desta “Cidade em Chamas” – título que vem de uma canção dos Ex Post Facto, a banda de um dos personagens, em que se grita a plenos pulmões “City on fire, city on fire!/ One is a gas, two is a match/ and we too are a city on fire” – está centrada num tiroteio ocorrido uma noite no Central Park e que, de certa forma, acabará por ligar todas as muitas personagens do livro.
Estamos em Nova Iorque nos turbulentos anos 1970, anos de grande agitação política e social que, mais para a frente no calendário, terminariam com o apagão de 1977, que durante mais de vinte e cinco horas deixou a cidade entregue a tumultos, incêndios e roubos – algo que Baz Luhrmann apresentou de forma mais poética em The Get Down, uma série com o carimbo da Netflix.
A galeria de personagens é imensa: Mercer Goodman, “um negro de bombazina e óculos“; William Hamilton-Sweeney, “um rapaz branco e desgrenhado, de blusão de motoqueiro“, namorado – ou talvez mais amigo colorido – de Mercer e a ovelha negra de um império financeiro que com ele partilha apenas o apelido; Charlie Weisberger, um pacato adolescente que se vê arrastado para dentro de um grupo anárquico; Sam Cicciaro, um íntegro e muito ético homem que é o último representante dos artesãos e artistas do fogo-de-artifício; Pulaski, um detective policial que tem o pólio à perna desde que era criança e que muitos querem ver reformado; Sam Cicciaro, a miúda rebelde que estará, sem o querer, no centro da narrativa; ou Richard Groskoph, um jornalista e eterno nomeado aos prémios da National Magazine, que se auto-caracteriza como “uma pessoa que desaparecia em tudo o que não era ela própria“. Porém, apesar desta extensa galeria de personagens – a que falta acrescentar uns bons nomes -, há uma voz comum a todas elas – a voz do próprio Hallberg? -, o que tende a transformar todas elas numa personagem única e, a espaços, perdida em lamúrias existenciais.
De louvar é a banda-sonora oferecida por Hallberg, seja tocando a fase final dos Stooges, mostrando o pontapé de saída dos Ramones ou voltando recorrentemente a “Horses”, o mítico disco de uma senhora chamada Patti Smith.
Estreia muito promissora, “Cidade em Chamas” estará mais próximo de um tremendo rascunho do que de alcançar o estatuto de obra-prima, nele encaixando como uma luva a shakespeariana expressão Much Ado About Nothing. Ou, dito em bom português, tanto barulho para nada.
1 Commentário
Na minha opinião, mais do que uma busca pela alma, as personagens deste romance estão todas confrontadas com os conflitos inerentes à busca pela identidade. Este parece-me ser o foco central de “Cidade em Chamas” e toda a narrativa se desfia por aqui, daí que discorde do autor da crítica perante a ideia que as derivas reflexivas das várias personagens se pudessem excluir. Creio que é esta vertente de confronto interno que faz com que este romance não seja apenas mais uma história de vidas cruzas à la JG Ballard. Se pensarmos em William II, em Keith Lamplighter, em Charlie ou em Richard, verificamos que toda a riqueza desta obra está na conflitualidade constante que pauta toda a sua acção, sem essa conflitualidade não chegaria sequer a existir trama.
Os valores envolvidos nesta obra pertencem ao buzz editorial que para mim pouco significa. O romance não é brilhante, mas é um excelente romance de estreia. Se vale tanto dinheiro, não sei responder porque provavelmente os do Dan Brown valeram mais e se o Kafka publicasse hoje valeria muito menos…