Em 1909, uma mulher recebeu pela primeira vez o Prémio Nobel da Literatura: a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940), cujas obras já então alcançavam enorme sucesso, e que ainda hoje é considerada uma das escritoras mais importantes da Escandinávia. “Charlotte Löwensköld” (E-Primatur, 2023) é uma das obras que melhor demonstram o talento da autora para construir narrativas envolventes, com retratos psicológicos vivos e representações implacáveis da sociedade do seu tempo. Adicionalmente, nota-se desde o início uma ironia fina, capaz de, por exemplo, revelar nas entrelinhas dos louvores a uma certa personagem que, afinal, não se trata de alguém assim tããããão extraordinário.
Este é o segundo volume de uma trilogia que tem a família Löwensköld como fio condutor, mas cujas partes podem ser lidas e apreciadas independentemente. As referências a acontecimentos do primeiro volume existem, mas são pouquíssimas e não interferem com o desenrolar da intriga. Esta começa por nos apresentar a nobre família Ekenstedt – aparentada com os Löwenskölds –, cujo filho varão, Karl-Artur, é idolatrado por uma mãe que nutre grandes expectativas para ele, embora o seu percurso até então não denuncie “qualquer sinal que o fizesse sobressair da multidão, ou que comprovasse que era dono de um enorme talento”.
Com efeito, o facto mais relevante da passagem de Karl-Artur pela Universidade de Uppsala é a aproximação a um colega peculiar, “um crente entusiasta, austero e quase fanático, do culto pietista“. Após assimilar algumas das suas ideias, Karl-Artur decide seguir a vida eclesiástica contra a vontade dos pais, tornando-se um pastor luterano muito cioso da própria pobreza, que almeja apenas “uma paróquia de aldeola onde tivesse tempo para se dedicar a cuidar das almas desvalidas”. Tal ausência de ambições sociais e económicas defrauda as expectativas familiares e atrasa o casamento previsto com Charlotte, uma parente distante, órfã e pobre, que vive como dama de companhia. Para esta, a situação agrava-se quando a sua notória franqueza fere o orgulho do amado, conduzindo-o a romper o noivado.
Apesar de amá-lo, Charlotte não lhe concede a admiração embevecida a que outras senhoras da paróquia o habituaram. Por seu lado, Karl-Artur ama sobretudo uma idealização de si mesmo e, sentindo-se despeitado, num arroubo de fúria, declara a intenção – que cumpre – de pedir em casamento a primeira mulher com quem se cruze na estrada. Para o imbróglio contribuem as maquinações de uma intriguista e as boas intenções de um industrial abastado, viúvo, simpático e com fraca auto-estima, que pede a mão da protagonista.
O lado romântico da história e o tom em que é contada levam a comparações frequentes e justas com “Orgulho e Preconceito”, da britânica Jane Austen, predecessora de Lagerlöf. Porém, embora o desenlace do drama de Charlotte seja gratificante, o ambiente geral é menos cor-de-rosa do que o predominante nos romances de Austen. Além disso, a transmissão dos pontos de vista das várias personagens é mais moderna, e destaca-se uma crítica contundente à sobranceria religiosa de quem se julga beneficiário de inspiração divina.
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