Corria o ano de 1965. No final de uma sessão de entrevistas dos Rolling Stones, uma fã entusiasmada pediu a Charlie Watts uma recordação: “Um objecto, seja o que for, algo para me lembrar deste momento”. O baterista levantou-se, passou-lhe a cadeira para as mãos e saiu.
Quem era este britânico enroupado e taciturno, de face granítica e fina ironia? “Charlie’s Good Tonight” (HarperCollins, 2023), a biografia autorizada escrita por Paul Sexton, revela alguém com múltiplas e inesperadas dimensões. Ainda que estivesse atrás da bateria de uma das maiores bandas de rock ‘n’ roll de todos os tempos — os Rolling Stones —, não era um clichê do mundo do espectáculo, amálgama de sexo, drogas e rock’n’roll. Não, Charlie não era nada disso. Se rasparmos a superfície da sua vida pública, encontraremos um distinto cavalheiro britânico, um homem elegante, invariavelmente bem vestido, alguém que usava fato só para estar em casa; humilde, reservado, pouco amigo de se expor, um homem de família bem casado, sempre relutante quando chegava a hora de partir em digressão.
A música entrou cedo na sua vida. Foi na infância que conheceu a paixão que o acompanharia para sempre: o jazz. Os seus heróis eram vultos como Charlie Parker, Max Roach, Chico Hamilton, Miles Davis e muitos outros. Chegou a trabalhar como designer gráfico — a arte era a sua segunda obsessão — e tinha por hábito desenhar todos os quartos de hotel onde ia ficando. Mais tarde assumiria responsabilidades no aspecto visual dos hiperbólicos concertos dos Stones.
Nos anos 60, Charlie começou a tocar no borbulhante caldo cultural da noite londrina. Conheceu figuras míticas como o fundador do blues britânico Alexis Korner, o baterista dos Cream Ginger Baker (que se tornaria seu amigo para a vida), o excêntrico cantor Screaming Lord Sutch e uma fauna abundante de músicos de todos os quadrantes. À conta da sua fama de baterista de jazz virtuoso, recusou múltiplos convites de uma tripla de peso, Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones, para se juntar aos Rolling Stones. Acabaria por aceitar, na condição de lhe garantirem pelo menos cinco libras por semana (“tivemos de ir roubar nas lojas para conseguirmos o Charlie Watts”, escreveria o guitarrista Keith Richards mais tarde na sua biografia “Life”).
Watts tornar-se-ia um pilar da banda nas muitas décadas de sucesso que se seguiram. “O Mick e o Keith precisavam dele para manterem também os pés na terra”, diz o engenheiro de som Chris Kimsey. “Era alguém em quem realmente podiam confiar em todos os sentidos”. Em palco, Charlie era o contraponto perfeito para o extravagante Mick Jagger: um remoinho de jóias, peles e couro de um lado, e um portento de disciplina e contenção do outro.
Paul Sexton desfia os momentos que compõem a vida do baterista, ao mesmo tempo que os cruza habilmente com a história e discografia dos Stones. Contudo, o escritor e jornalista acompanha a banda de perto há 30 anos, pelo que terá sido difícil fugir das amarras do tom elogioso. Há uma profusão de entrevistas com família e amigos do baterista, pintando um retrato muito favorecido do músico. Sexton até menciona um período mais tardio de Watts, em que este se perdeu nos excessos típicos do rock (nos anos 80), mas despacha-o com uma frase e sem pormenores escabrosos.
Nota para algumas fragilidades na tradução que fazem o livro soar a traduzido em muitos trechos, com frases francamente estranhas (“O Mick Taylor era o típico que tinha de ser gravado assim” e “um alarme de incêndios de bom tamanho” são exemplos). Ainda assim, a obra é uma interessante janela sobre a vida de um dos melhores bateristas da história do rock ‘n’ roll. Sem Charlie Watts, os Rolling Stones nunca mais serão os mesmos.
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