Estamos na Espanha dos anos 50, governada com mão de ferro pelo general Francisco Franco; a nefasta guerra civil terminou em 1939 e estão ainda bem presentes os traumas do conflito que matou mais de meio milhão de pessoas. Nas serras das Astúrias acoitam-se os últimos rebeldes da guerrilha republicana, perseguidos pelos verdugos do regime nacionalista. Aí perto, num campo árido na aldeia de Pueblo Grande, é encontrado o cadáver de uma menina.
O capitão dos serviços secretos Arturo Andrade toma as rédeas da investigação, sem saber que o hediondo crime é apenas a ponta de uma meada que implica as altas esferas do regime fascista. Com a ajuda do antigo camarada de armas Manolete, Andrade investiga uma das facetas mais obscuras do regime de Franco: o roubo e desaparecimento de crianças republicanas de uma maneira legal e institucionalizada.
“Gostaria que fosse apenas ficção, mas este conto de terror é real. Sucedeu durante quarenta anos”, afirma o autor Ignacio Del Valle em entrevista ao site Culturamas. “Havia duas leis que sustentavam este delírio, uma permitia retirar às mães presas as crianças, quando estas faziam três anos, e outra mudar-lhes o apelido mediante determinados pressupostos. Com isto, o registo civil podia fazer o que quisesse, e assim se cumpria uma infâmia que, não tenhamos dúvida, também foi um grande negócio para alguns”.
Decorrendo em grande parte no cenário rural das Astúrias, “Céus Negros” (Porto Editora, 2017) viaja também até Madrid, pintando uma visão panorâmica da Espanha franquista e dos contrastes da época; um país dividido, com as distintas famílias do regime em disputa interna, enquanto mães e filhos republicanos são torturados e massacrados – mas também um país a dar os primeiros passos de recuperação, envolto em paradoxos como o do Auxílio Social: por um lado, salvando milhares de crianças das garras da fome, por outro, punindo-as severamente e vendendo-as como mercadoria.
A escrita directa e visual de Del Valle adequa-se ao tema, criando uma atmosfera negra e tensa que nos acompanha ao longo do livro. A violência da trama contrasta com a voz do narrador: o ar quente e sufocante do verão marca o ritmo sereno das frases, “tornando tudo mais intenso, como quando se limpa um quadro”. O talento descritivo do autor produz algumas frases de grande efeito, como quando nos diz que “um rio velho e pesado atravessava a noite, empurrado pelo peso implacável do hábito“.
Este é já o quarto livro protagonizado pelo carismático Arturo Andrade. Veterano de guerra, Arturo é uma personagem complexa e ambígua – um desertor, um impostor, antigo combatente republicano que soube confundir-se com os franquistas e fazer-se passar por um deles. Amargurado e cínico, sabe que a justiça nunca é completa e perdeu há muito a inocência e o idealismo.
Em contraponto, a hilariante personagem de Manolete protagoniza algumas das passagens mais divertidas do livro – “eu não como peixe”, diz a dado ponto, “os peixes mijam na água e nadam no xixi”. Arturo diz: “Mas há pessoas que também mijam na água”. Resposta pronta de Manolete: “Também não como pessoas”.
Ainda que o desenlace da história se revele um pouco confuso, Ignacio del Valle domina magistralmente os códigos e atmosferas do policial negro, aliados a uma sólida investigação e a um bem construído enquadramento histórico, aspectos que fazem de “Céus Negros” um romance muito recomendável.
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