“Os açorianos precisam do Bom Jesus dos Aflitos, como ou sem ermida. Este sempre foi um povo de aflitos – é daí que vem a religião, socorro para quem suportou sem ajudas intempéries e humores meteorológicos. Um povo aflito que habita em ilhas de vulcões, terramotos, pilhadas por piratas, feita de gente que desbravou uma terra agreste e que, no meio de tanta aflição, rezou, implorou numa prece aflita, dominada pelo medo das intempéries, numa terra que tem tanto de belo como de tenebroso.”
Tudo começa na casa dos avós maternos, num bairro lisboeta da Estefânia, com Nuno Costa Santos a olhar para o livro escrito pelo avô. Um homem do qual se recorda estar sempre acompanhado com “uma garrafa de oxigénio comprida e estreita de onde saíam tubos que se ligavam às narinas”. A obra escrita pelo seu avô relata a dolorosa experiência de seis anos de tratamento – entre os anos 40 e 50 – no sanatório do Caramulo, contra um dos maiores males na época: a tuberculose. Mas, ao arrumar o livro do avô na estante, um pedido acaba por cair aos seus pés: que um descendente com interesse pela escrita viaje até São Miguel, nos Açores, para recolher histórias mais recentes da terra.
“Céu Nublado com Boas Abertas” (Quetzal, 2016) balança entre o êxtase da descoberta e uma certa melancolia presente em cada pessoa que o autor – e também protagonista – vai encontrando, na sua viagem a São Miguel, e na história do seu avô. Ao longo das páginas, a história do avô de Nuno Costa Santos vai-se misturando com todas as histórias encontradas – e devidamente anotadas – na ilha. Um desejo por uma vida simples, com a esposa Manuela ao seu lado para terminar com o namoro de “falar à janela”, acaba por ser apanhado pela tuberculose, doença tão fatal nos anos 40, arrastando toda a família para a sua tristeza e dor: “Eu tivera azar e arrastei-a na minha adversidade. E por isso a tristeza, a dor, a revolta íntima, era mais intensa, mais profunda, com laivos de traição”. Uma história tão desesperada por a morte nunca ser uma hipótese descartada, e que acaba por se misturar com as pequenas descobertas feitas pelo autor à medida que vai revivendo os seus lugares da infância em S. Miguel.
Ao aproximar-se da ilha, ainda na viagem de avião, as condições meteorológicas permanecem iguais, com “nevoeiro, vento, chuva, tempestade” a caracterizarem fielmente a ilha. Aliás, não poderia existir título mais literal para esta obra de Nuno Costa Santos. Na dificuldade de aterragem e enquanto lê o jornal nos anúncios de prostituição – com demasiados trocadilhos com os nomes das ilhas como “Loira Graciosa. Boazona de São Jorge. Sensualíssima do Corvo. Coisinha Sexy do Ilhéu das Cabras” –, acaba por conhecer Laureano, demasiado desconfiado pela intimidade demonstrada num primeiro momento, longe de desconfiar que será a primeira pessoa de quem irá recolher uma história. A partir deste momento, o leitor vai intercalando as histórias deste “Céu Nublado com Boas Abertas” entre o destino quase fatal do avô do autor, na estância do Caramulo, e das pessoas que vivem, no século XXI, em São Miguel.
Entre a ficção e a realidade, o protagonista faz da sua estadia em São Miguel uma busca vincada por histórias que possam encantar João Pereira da Costa, o avô, à medida que dá a conhecer a história da sua família ao leitor. Tal como em Arquipélago, do escritor Joel Neto – eleito o melhor livro de ficção portuguesa para a nossa equipa de 2015 -, não faltaram leituras ao protagonista para compreender e contar a história da sua família – ficando na memória os episódios de confronto de João Pereira da Costa com a ausência de fé – à medida que conta mais sobre a Ruiva do Pico ou sobre Marinho, um homem que viveu duas décadas ressentido por um porteiro não o ter deixado entrar numa boîte para se divertir com os amigos e as fêmeas, sem esquecer o casal asiático que tenta criar raízes numa terra tão portuguesa. Um céu nublado, pelo definhamento do avô à tuberculose, com boas abertas para um novo e futuro livro, a ser anotado pelo autor.
Várias personagens ricas e um protagonista excepcional têm a capacidade de dar origem a uma bela história. “Céu Nublado com Boas Abertas” é o concretizar de uma promessa, em que o grande protagonista – o falecido João Pereira da Costa –, com a sua derradeira luta, é uma das mais fascinantes personagens. Para completar a história, tornando-a ainda mais apelativa, surgem personagens peculiares e fundamentais que vão de encontro a Nuno Costa Santos, autor e protagonista, ao mesmo tempo presente e ausente, de forma equilibrada. Alguém talentoso para intercalar histórias e se manter, de certa maneira, ausente da narrativa. Aqui, o verdadeiro valor está no que vêem os seus olhos, que nunca se intrometem nos comportamentos de cada personagem.
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