A edição de 2018 da Noite da Literatura Europeia, que decorreu no passado dia 9 de Junho, cresceu e permitiu ao leitor uma peregrinação ainda maior. Os peregrinos deste ano, muitos deles repetentes (arriscamos dizer), puderam rumar à Feira do Livro de Lisboa para assistir à conferência que, em tom internacional, discutiu o panorama da literatura europeia actual, numa conversa moderada por Pedro Vieira.
Para quem caminhou, a hora seguinte serviu para palmilhar a cidade e chegar ao Lyceu Passos Manuel, começando aí o roteiro que, este ano, assumiu catorze nacionalidades diferentes. Tudo para viver uma noite dividida entre poesia, romance, narrativa biográfica e algumas histórias de encantar.
A edição deste ano proporcionou o contacto com dez espaços diferentes, entre a Praça do Príncipe Real e a Calçada do Combro. Em noite de arraiais, espalhados um pouco por toda a cidade, no Bairro Alto fez-se silêncio, de meia em meia hora, para usufruir de momentos únicos e cada vez mais concorridos.
À descoberta, o leitor segue em busca de novos autores, de novos livros – alguns deles por cá publicados – ou optando por seguir alguns leitores repetentes, como garantia de uma boa interpretação. Há também as preferências por certos países ou o ir experimentar umas linhas de um ou outro autor premiado. Assim, de mapa aberto, gatafunham-se locais e traça-se um roteiro personalizado, sempre a tempo de fazer alterações já que este ano, pela primeira vez, o leitor não pode assistir a todas as leituras.
Mas antes de começarmos a meter carimbos no passaporte literário a noite arrancou, e muito bem, com a Companhia Maior, um “coro falado” no qual os artistas – também todos em idade maior – se apropriam das palavras dos poetas e, de forma muito peculiar, dão voz a mais de uma dezena de poemas. A conjugação de vozes e formas de dizer são uma experiência intencionalmente tacteante, como salientou o compositor e director artístico Miguel Azguime.
Nas vozes sábias destes artistas ouvimos, com variadas interpretações, “Salzburg”, de Eugénio de Andrade, destacando-se a voz e o sentimento de Carlos Ney; “No país dos sacanas”, de Jorge de Sena, onde a alegria e a expressão de Maria José Baião cativa uma plateia inteira; “Conto as Praias”, de Yvette Centeno, onde ao coro completo se juntaram as gaivotas e a chuva ameaçou voltar. Ouvimos também “Rir, Roer”, de Alexandre O’Neill, onde se destacou a vivacidade e a pujança da voz de Maria Emília Castanheira e, mesmo no fim, “Cidadania”, de Natália Correia, naquela que foi a interpretação mais experimental de todo o espectáculo. A noite não podia ter começado melhor.
No auditório do Lyceu esperava-nos Alexandre Pieroni Calado que, com a sua voz cavernosa e impactante, leu e interpretou, com convicção e segurança, poemas da obra “Oblívio”, do português Daniel Jonas, recentemente premiado com o Grande Prémio da Literatura dst.
“Assim no meu soneto aqui gravei / Quem não sou nem fui e menos serei.”
É destacado no autor o depuramento da palavra, a sensibilidade e a ligação ao quotidiano, que em entrevista, tal como leu Calado, disse querer ter na sua escrita um lado profundamente superficial – o que não deixa de ser curioso quando ouvimos ler “está tudo bem defunto…”. Uma primeira sessão intrigante e sombria.
A sessão seguinte abraçou a curiosidade de conhecer a Biblioteca do Lyceu e a literatura finlandesa. Na voz e na sentida interpretação de Sandra Hung ficámos a conhecer uma passagem crucial da obra “Ano da fome”, de Aki Ollikainen. Em 1867, a Finlândia atravessou um dos períodos mais dolorosos da sua história, retratado no livro através da família de Marsha, que descreve a fome como um gato que arranha. A actriz interpreta bastante bem o desespero e o desconsolo dessa família, perdendo os filhos para a fome.
Do clima ameno da Biblioteca rumámos aos claustros para ouvir Conceição Candeias, que iniciou, em tom doce e sereno, uma mensagem de vagabundagem sem fim, arrancada ao poema “Viagem”, de Zbigniew Herbert, que está entre os poemas mais emblemáticos do autor que surgem compilados na antologia «Escolhido pelas estrelas» (Assírio & Alvim).
“Se te preparas para fazer uma viagem que essa viagem seja longa, vagabundagem sem fim, aparente errância sem fim, para conheceres a rudeza da terra, não só pelos olhos, mas também pelo toque …”
É tempo de visitar outro local. Saímos do Lyceu para o Largo de Jesus, onde a Igreja de Nossa Senhora de Jesus jaz fechada (como é costume). Fica a dúvida de onde irão decorrer as leituras de Itália, mas rapidamente entramos numa porta lateral e nos apercebemos estar na Academia das Ciências de Lisboa, onde decorrem leituras da Croácia, Roménia, Grécia e Reino Unido.
Na sala das sessões, a leitura está a cargo de Ulisses Ceia. O actor é exímio nas apresentações que faz e é dos poucos que interpreta sem leitura, sem papéis e com a capacidade de nos levar para dentro de cena, tudo com o mínimo de recursos. Ulisses interpretou a angustiante relação entre Aneeka e Eamonn, num constante conflito de lealdades. Os irmãos de “Conflito Interno”, da premiada Kamila Shamsie, foi muito bem entregue. A autora ganhou no passado dia 8 de Junho o Women’s Prize for Fiction 2018, estando destacada pela qualidade dos seus romances mas, também, pelo lado politizado das suas narrativas, num tema tão polémico como actual: as migrações e os refugiados.
A passagem pela Roménia fez-se com frio e com as leituras do próprio autor, Radu Sergiu Ruba, a serem seguidas de uma voz já conhecida e apreciada, a do radialista Gonçalo Câmara, co-autor do programa Há ainda quem queira escrever. Desta sessão fica-nos a vontade de conhecer mais deste romance biográfico, onde a memória da visão suplanta a própria visão quando o narrador-protagonista perde a visão. Esperemos que venha a ser editado em Portugal.
(Sem saber da entrada para a capela. Ficamos sem saber “onde está a Itália”.)
O bom deste evento é que funciona como uma espécie de rally das tascas: basta querer tomar mais copo para se entrar na sessão seguinte. Bastou descer a rua e entrar no Museu-Atelier Júlio Pomar para absorver aquela que talvez tenha sido a melhor sessão.
Ana Sofia Paiva, repetente – e ainda bem que o é -, vai ler “La tresse – A Trança”, da francesa Laetitia Colombani, também presente e a certa altura leitora na sessão. Mas como o livro relata a história de três mulheres temos um bónus, uma bailarina de dança contemporânea que dá corpo à leitura emotiva de Ana Paiva que, na sua voz, nos leva até Smita, na Índia, a Sarah, no Canadá, e a Giulia, na Sicília, numa busca pela esperança e pelos pontos, muito ténues (como fios de cabelo), que unem estas e muitas outras mulheres. “A Trança” foi publicada em Março no nosso país pela Bertrand Editores.
De volta à rua, em busca da sessão da Itália, a volta ao quarteirão faz-se com um frio nada típico da nossa cidade amena, tão habituada a outras temperaturas que todos os anos recebem o Santo António. Já na Sala da Irmandade, o ambiente austero é facilmente quebrado pela azáfama em volta de uma pizza. Voluntários, autor e leitor daquela sessão enfardam pizza à moda italiana – ou simplesmente à laia de quem tem muita fome, pois a hora já vai avançada.
Uma leitura por uma fatia de pizza foi quase a primeira frase que Errico Buonanno disse, em tom de desculpa pelo leve atraso da sessão. Na sua leitura expressiva e entusiasta, na qual a língua italiana ajuda muito, percebemos as aventuras de desventuras de um frade de 1653, que tinha como poder inútil a capacidade de voar. Assim conhecemos as histórias de encantar de “Vida extraordinária de homens voadores”, para a qual a leitura de João Vicente já não convenceu, nem foi capaz de se igualar à apaixonante leitura do autor italiano.
Como para nós não restava pizza, fomos pela Rua da Academia das Ciências até à Galeria Ratton, mas não a tempo da leitura dos poemas de Olga Stehlíková. No entanto deu para olhar oara alguns azulejos, já que o projecto da Galeria é recuperar a sua tradição, apostando na inovação das técnicas de o trabalhar.
A noite já ia bastante longa, mas ainda teria de haver espaço para o recém-publicado “Fora de Si”, de Sahsa Mairanna Salzmann, da Alemanha. Livro esse incluído na shortlist do Prémio Alemão do Livro de 2017 – e acabado de publicar cá pela Dom Quixote. O espaço escolhido foi a sala O Século, na Secretaria-Geral do Ambiente, onde funcionou, desde o final do século XIX até 1977, o jornal O Século.
É entre as vitrinas com entalhados de ferro e sinalética alusiva ao expediente do dia-a-dia do jornal que conhecemos Ali e Anton, numa excelente interpretação onde Patrícia André se divide entre dois irmãos. Num relato entre Berlim e Istambul, são narrados mais de 40 anos da história de uma família e das convulsões sociais do final do século XX.
Para o final guardámos o diálogo poético de Felipe Benitez Reyes, que abraça o universo pessoano. Num espaço onde muitos foram um só (Liga dos Combatentes) leu-se “Privilégio de Penumbra”, revisitando Álvaro de Campos às avessas com a contabilidade dos dias, num resultado que emerge o leitor no universo de penumbra que envolve Fernando Pessoa e a Lisboa do poeta. A leitura, num só fôlego, por Inês Lago, teria sido uma das interpretações da noite, não fosse o barulho na sala que desconcentrou quem ali realmente queria estar. Ainda assim, se o passaporte literário tivesse um pódio, pertenceria em pé de igualdade, pela leitura e conteúdo a: Ana Sofia Paiva/Laetitia Colombani, Inês Lago/Felipe Benitez Reyes e Ulisses Ceia/Kamila Shamsie.
A Noite da Literatura Europeia é um evento a cargo da EUNIC Portugal, que se dedica à promoção da identidade europeia através da realização de actividades que divulguem e promovam o seu património cultural.
Fotos gentilmente cedidas pela EUNIC Portugal
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