“Cães batidos / ganindo guinando / correndo atrás dos seus latidos / como de ossos”
É com este poema, intitulado simplesmente “Cães”, que Daniel Jonas dá início ao seu mais recente livro, “Cães de Chuva” (Assírio & Alvim, 2021), e a tristeza que escorre destas quatro linhas define o tom geral da obra, embora nela também existam raios de luz. Cruzando referências culturais de várias eras, mas sempre irresistivelmente moderno, o autor marca as páginas com a força dos grandes temas: o amor e a morte, o tempo e a perda.
A interpretação da poesia é sempre algo muito pessoal, mas talvez possamos aproximar-nos um pouco do pensamento que o autor verteu em palavras se tomarmos em consideração os títulos das secções em que a obra se divide, logo após aquele poema de abertura: “Cailean”, “Madain”, “Caleb” e “Sirius”.
“Cailean” significa “cachorro” em gaélico, remetendo para uma ideia de juventude, física ou espiritual, presente em vários poemas, mesmo que seja para recordá-la e lamentar a sua perda. Também é interessante reparar que esta secção começa e acaba com referências explícitas à antiga cidade grega de Tróia, havendo pelo meio menção a Ulisses, o herói que sobrevive à guerra para iniciar a sua própria odisseia, estando o seu fiel cão, Argos, entre os poucos que o reconhecem quando regressa a casa, muitos anos depois.
O termo “Madain” é mais complexo de decifrar. Poderá dizer respeito a uma zona onde existem vestígios dos primeiros cães domesticados, na actual Arábia Saudita, embora aqui esteja em causa a domesticação de outra espécie, como podemos depreender dos seguintes versos: “Estamos no hammam / como num círculo de Dante / hesitando / entre purgatório e inferno / entre eucalipto e zyklon b. / Respiramos o que nos dão / arquejando / como um peixe retirado ao Báltico / dançando ante / o pescador / dando à cauda no seu último avatar de cão / ainda crente / no dono”.
“Caleb” será provavelmente uma referência ao herói bíblico, cujo nome está associado à palavra “cão” e às características de fidelidade e bravura deste animal. Não será por acaso que o primeiro poema desta secção se intitula “Ao Herói Desconhecido”.
“Sirius”, também conhecida pelo nome latino “alpha Canis Majoris”, é a estrela mais brilhante da constelação do Cão Maior, a qual, tal como a do Cão Menor, nasceu quando Zeus fez ascender aos céus os cães de caça do gigante Órion, segundo a mitologia grega. E é aos céus que a quarta e última parte do livro nos leva, desde o primeiro poema, onde acompanhamos uma sonda espacial no fim dos seus dias, após ter servido a humanidade com uma lealdade canina. Aqui, até as estrelas servem a humanidade, embora esta surja dividida entre a mortalidade e o desejo de transcendência que a torna capaz de galgar o cão da chuva.
Talvez todas estas interpretações estejam erradas, mas a obra é claramente atravessada por um caminho que nos leva dos primórdios ao éter, para além da mera apreciação da beleza nas combinações de palavras. A principal dúvida que permanece é se os cães serão avatares dos humanos, ou vice-versa.
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