O nome de Bruce Springsteen evoca superlativos. Aos 67 anos acumula 20 Grammys, 4 American Music Awards, 1 Oscar e mais de 120 milhões de álbuns vendidos. Artista intimista e discreto surpreende nos palcos, onde se revela um showman bombástico. Os seus concertos são mais que actuações programadas. São momentos de entrega e profunda generosidade para com o público, fazendo com que quem lá está se sinta bafejado pela sua intensidade. Bruce Springsteen cumpre mais do que a sua função de artista, procurando deixar sempre mais. Mais vontade de estar e renovar o som, os movimentos e o sentido de cada letra e de cada música. No enquadramento do palco e da banda, o espectador fica com a certeza de estar a receber algo que foi montado a pensar em si, com profissionalismo e entrega.
É também esta a sensação com que se fica ao fim das quase 600 páginas de “Born To Run” (Elsinore, 2016) a autobiografia editada pela Elsinore, uma escrita biográfica, obsessiva e confessional. Um livro que parece ser, acima de tudo, uma celebração da vida. Estão lá as primeiras amizades, os afectos e frustrações familiares, as batalhas travadas na adolescência e as primeiras vitórias quando, não sendo um prodígio precoce na música, definiu e persistiu num caminho de descoberta, treino e aventura.
Embora carismático, Bruce Springsteen mantém um lado sombrio que se sente nalgumas canções. Fruto da relação entre um operário e uma secretária, teve uma infância de “miúdo inadaptado, estranho e medroso”. Nasceu na cidade de Freehold, New Jersey, nos Estados Unidos, em 1949. O comportamento destrutivo e violento do pai, o pilar que foi a mãe, a excessiva liberdade concedida pelos avós com os quais viveu, o instinto de sobrevivência, o ensaio e a transgressão, a religiosidade, as influências holandesas e italianas, a vida de um jovem que floresce entre conflitos e discrepâncias familiares.
Aos 30 anos era já uma estrela do rock. Chega lá exposto às influências sociais e políticas do momento, turbulentas décadas de 60 e 70, inspirando-se na música e nos movimentos de Elvis, como na imagem e impacto dos Beatles. A procura de uma identidade numa América ela própria em ebulição.
“Born To Run”, álbum editado em 1975, já foi por alguns considerado uma crónica musical perfeita e universal. Tendo como cenário o sonho americano do ponto de vista dos jovens, o tema é identificável com outras dezenas de lugares no mundo. Fala sobre as coisas simples da vida, de entre romances e outros temas. O ponto alto foi como Bruce fez isso: arranjos impecáveis, uma banda excelente e boas composições. O álbum, tal como a autobiografia a que deu o mesmo nome, é em si um bom exemplo do percurso de Bruce Springsteen, abrindo com uma melodia doce de gaita de uma das suas melhores canções, Thunder Road. A originalidade do arranjo conquista. Seguem-se composições com influências do blues e jazz e, num registo bem diferente, impregnado de rock’n roll agitado que lembra as canções de Elvis Presley. “Born To Run” entra facilmente na lista dos clássicos. Um conjunto de canções prazerosas de ouvir como também o é o relato de Bruce relativamente à sua vida e obra:
A autobiografia enquanto género literário, literal ou possuindo ingredientes ficcionais, mais não é que a do que a vida de uma pessoa relatada por ela própria. No caso de “Born To Run” são respeitadas as regras de ouro. A narrativa surge cronológica, a história é contextualizada no tempo e depende dele, com respeito pelo carácter progressivo, fazendo com que nos sintamos parte da trajectória relatada. Respeitar o leitor parece ter sido uma das preocupações, encontrando-nos perante uma narrativa agradável que, apesar das quase 600 páginas, permite gerir eventuais pausas, sendo fácil voltar ao ponto em que se parou. Encontra-se dividida em blocos equivalentes a um determinado período da vida – Livro Um “Growin Up”, Livro Dois “Born To Run” e Livro Três “Prova Viva”.
Falando sobre música, família, ambição, egocentrismo, persistência e depressão, Bruce Springsteen recorda, de forma cronológica, onde nasceu, o que o influenciou, os amigos, as ocupações, as descobertas. A procura de limites e a ausência deles na infância e adolescência. Os vínculos familiares, a procura de segurança afectiva e de identidade. As perdas e os conflitos precoces. Um livro escrito com calma, ao longo de 7 anos. Nas palavras do próprio, sem “pressa ou qualquer prazo”.
Escrito e reflectido como se de um processo de terapia se tratasse, de materialização e aceitação pessoal, acaba por servir dois públicos: os que querem conhecer as suas influências musicais, os grupos que o ajudaram a formar e a construir a identidade que tem hoje e, também, aqueles que se interessam fundamentalmente pela narrativa pessoal, pela experiência vivida, mais ou menos dramática, como tem encarado a vida. Uma lucidez que tem feito a diferença num meio tão propício a comportamentos limite.
“A juventude e a morte sempre foram uma combinação inebriante para os criadores de mitos que pululam pelo mundo dos vivos. E a falta de amor-próprio, perigosa e inclusive violenta, foi desde sempre um dos ingredientes essenciais nas fogueiras da transformação. Quando o “novo eu” renasce das cinzas, o autocontrolo e a imprudência estão ligados de forma imutável. Eis o que tona a vida interessante. Muitas vezes, a alta tensão entre estas duas forças faz com que seja fascinante e divertido ver um artista, mas também coloca uma cruz branca à beira da auto-estrada. Muitos dos que percorreram este caminho acabaram por morrer ou ficar com uma exaustão grave. O culto da morte é bastante acarinhado no mundo do rock, com direito a narrações na literatura e na música, mas na prática não resulta em grande coisa para o cantor e a sua canção, excepto uma boa vida que fica por viver, pessoas amadas e filhos que ficam para trás, e uma cova funda no cemitério. O findar no auge da glória não passa de uma grande treta.”
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