É um daqueles livros que, por razões várias, chega às livrarias com uma aura mítica. “Blackwater 1: A Cheia” (Editorial Presença, 2024), assinado por Michael McDowell, é o primeiro de seis livros da saga Blackwater, e deixa definitivamente água na boca para o que virá a seguir.
Com doutoramento em Literatura, Michael McDowell (1950-1999) foi autor de 30 livros, e co-criador dos filmes de culto “Beetlejuice” e “O Estranho Mundo de Jack”, ambos realizados por Tim Burton. Em Blackwater, série que vive agora uma espécie de (re)descoberta, transporta-nos para a Alabama do início do século XX, dando a conhecer uma história familiar através do sobrenatural que, neste primeiro volume, surge ainda em lume brando – a sensação é quase a do primeiro Alien: não o vemos mas está decididamente lá, pronto a atacar.
Estamos na madrugada de Páscoa de 1919 em Perdido, Alabama, “onde todos os negros emancipados se tinham congregado em 1865, e onde os seus filhos e netos ainda viviam. Agora não passava de um redemoinho toldado de tábuas, ramos de árvore e animais mortos e inchados”. Isto depois de uma cheia que fez transbordar os rios Perdido e Blackwater, fazendo com que a vila apodrecesse “sob um vasto lençol de água malcheirosa, parada e escura que só agora começava a recuar”.
Numa altura em que se exige um espírito de perseverança contra a adversidade, os donos das três principais serrações de Perdido unem esforços para a reconstrução, cabendo a Mary-Love, a implacável matriarca da família Caskey, bem como ao seu obediente e manso filho Oscar – o clássico menino da mamã -, servirem de pilares a uma comunidade pouco dada a grandes sobressaltos.
A vida desta pacata comunidade transforma-se quando, num quarto do meio submerso Hotel Osceola – que estranhamente parece ter escapado a esta cheia apocalíptica -, Oscar descobre Elinor Dammer, com o seu “cabelo ruivo e cor de lava”, que diz estar há quatro dias à espera da evacuação, ainda que aparente uma frescura de frigorífico.
Aos poucos, à boleia de um passado que parece não ter ficado registado em qualquer repartição, Elinor Dammer começa a tornar-se uma figura de referência em Perdido, estendendo os seus tentáculos à família Caskey, mas apenas Mary-Love parece incapaz de perder a desconfiança: “Tanta energia gasta numa comunidade de desconhecidos parecia-lhe ser sinal de que havia um objectivo pré-definido por detrás de tudo aquilo – mas qual seria?”.
Michael McDowell é, recorrendo à gíria futebolística, um falso lento. Por detrás de toda a pacatez de uma vila que parece mover-se em câmara lenta, joga com os elementos naturais, o entusiasmo sobrenatural e as relações pessoais para construir uma trama que, por detrás de uma superfície calma, esconde um magma vivo, prestes a cuspir lava. Tudo num lugar remoto onde se sente o peso do racismo, a diferença de classes ou o culto do estatuto, abalado pela chegada de uma estranha que parece ter o poder de fazer o céu cuspir água. Literalmente.
“A Barragem”, o segundo livro desta recomendável série, está já disponível nas livrarias, novamente com uma capa muito bem desenhada.
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