É, sem dúvida, um dos grandes acontecimentos literários do ano em Portugal: o início da publicação, pela primeira vez e em português, da tradução integral da Bíblia Grega, incluindo o Antigo e o Novo Testamentos, traduzida, apresentada e anotada por Frederico Lourenço. Neste primeiro volume lançado pela Quetzal estão reunidos os Quatro Evangelhos que compõem o Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Em temos literários, a Bíblia é qualquer coisa como o equivalente religioso às Mil e Uma Noites, um festim que agradará tanto a cristãos fervorosos como a ateus praticantes. Um livro que, ao longo do tempo, parece ter vivido sempre num mundo à parte, onde se cruzam realidade e ficção, como uma ponte literária suspensa na fronteira entre a terra e o céu.
O Antigo Testamento grego é ainda mais espesso que o católico. Enquanto este último é composto por 46 livros, o grego junta-lhe mais sete, e esta nova tradução dará a ler os 27 livros do Novo Testamento e os 53 do Antigo Testamento, fazendo desta a mais completa Bíblia com edição portuguesa.
Reza a história, bem como os boatos e os rumores que a alimentam, que a Bíblia terá nascido em Alexandria, no Egipto, no século III antes de Cristo. Em relação à Bíblia grega, Frederico Lourenço defende que esta é “de inestimável importância para o estudo histórico tanto do judaísmo como do cristianismo“. Quanto ao enorme projecto que decidiu tomar entre mãos, apresenta-o como “dar a conhecer o texto bíblico num formato que, tanto no que toca à tradução como aos comentários, privilegia a forma não-doutrinária, não-confessional e não-apologética, a compreensão do texto grego“. Será, igualmente, um lugar de redescoberta tanto de sentidos como de palavras, que terão ficado de fora do contexto eclesiástico cristão. Aliás, uma boa forma de ler a Bíblia será tentando deixar de lado o fervor religioso, atentando à linguística que o texto apresenta e que sobreviveu durante milénios apesar de, à partida, não estarmos perante aquilo que se poderia chamar de grande literatura.
Neste primeiro volume estão reunidos “quatro textos que mudaram para sempre a história da humanidade“. E, de certa forma, daquilo que era a imagem da literatura. Ficavam de fora as façanhas e os actos heróicos de reis e guerreiros, as conversas de tom aristocrático, para se dar voz a pescadores e a leprosos. Não se sabe quando foram escritos, por quem terão sido escritos, ou sequer se a ordem cronológica pela qual têm sido lidos ao longo dos séculos será a mais correcta. Enquanto os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são semelhantes nas palavras, na estrutura e na forma como estão organizados – o que poderia indiciar um autor único ou um mesmo grupo de autores -, o de João é completamente diferente e, de entre os quatro, o único que assume publicamente a natureza divina de Jesus. Em comum há, contudo, a missão de narrar a vida de um homem que foi crucificado, em Jerusalém, na fase final do reinado do Imperador romano Tibério. Todos eles falam na ressurreição de Cristo, apesar de não se encontrar sobre este qualquer referência à data de nascimento ou da morte. A infância de Jesus apenas poderá ser efabulada, uma vez que não se encontram nos Evangelhos quaisquer relatos sobre ela.
Os leitores, sejam eles cristãos ou ateus, encontrarão nestas páginas narrativas belíssimas, além de uma mensagem que continua a ser, nos dias de hoje, bastante válida e necessária: “E se há verdade que todos os dias nos é confirmada pela observação objectiva da realidade humana é que, no cerne do seu valor ético, a mensagem de Jesus continua hoje tão válida, tão certeira e tão urgente como era há dois mil anos“. Ou, como poriam os Beatles de outra forma, “all you need is love”. Um grande Ámen a isto.
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