Para muito boa gente que atravessou os anos 80 e 90, fosse durante a acnosa puberdade, a revoltosa adolescência ou a turbulenta entrada na vida adulta, houve um influenciador comum. Uma espécie de super-herói que, sem usar máscara ou adereços especiais, foi capaz de encantar betos, gunas, conservadores ou indies que, em vez de médicos, advogados ou embaixadores, queriam era tornar-se escritores. Alguém que conseguiu a proeza de, imagine-se, pôr conservadores, liberais ou revolucionários a votar no partido da monarquia, tudo contra a etiqueta ou o manual do bom político. Esse alguém dá pelo nome de Miguel Esteves Cardoso, escriba a quem a Escritaria dedicou a sua 16ª edição, tirando a literatura do pedestal e transformando-a, tal como se exigia, numa celebração pop. Está de parabéns a organização.
Penafiel não foi de modas e vestiu-se a rigor para a festa, podendo descobrir-se referências em toda a cidade à passagem do furacão MEC – sigla por que ficou conhecido um dos motores criativos do jornal O Independente ou da revista K – que, anos depois, lá arranjou forma de olhar com carinho para esta abreviatura com ar de sigla política. Como assinatura para esta edição, MEC foi ao baú e escolheu esta frase, impress em tote bags ou marcadores de livros: “É bom ter tudo por perto, fazer tudo nos mesmos poucos metros quadrados, desde que os cúbicos sejam infinitos”.
E nem a chuva, que insistiu em espreitar durante um fim-de-semana inteiro, afastou fãs, admiradores, leitores ou curiosos, que compareceram a momentos como o concerto com os Sétima Legião – banda cujo primeiro single (“Glória”) foi escrito por MEC e lançado na sua editora, a Fundação Atlântico –, a entrevista conduzida por João Pedro George ou uma recriação, por volta da hora do chá de domingo, de uma Noite da Má Língua.
Para além do descerramento da escultura, que imortalizou em ferro a sua passagem pelo Escritaria 2023, uma exposição na Biblioteca Municipal mergulhou no triângulo criativo de MEC – como crítico musical, escritor/cronista ou jornalista -, precedida de uma recriação surrealista, no átrio, em redor de “O Amor é Fodido”, um dos seus livros mais celebrados.
As conversas, prato forte da Escritaria, trouxeram ao Museu companheiros de aventuras, discípulos e admiradores, gente grata e reconhecida que pintou um retrato dos vários universos criativos de MEC, a que só faltou um olhar mais atento sobre o seu lado romanesco.
“Tudo parecia rock n roll”. Palavras de Francisco Mendes da Silva, que apanhou O Independente numa segunda vaga, em plena campanha anti-Cavaco, e que delirou com este zé povinho feito à “sensaboria e cinzentismo da imprensa portuguesa”; Carla Quevedo, que como muitos começava a leitura do semanário pela crónica de MEC, falou de “um jornal para uma geração mais nova”, com “uma escrita clara, que não era aborrecida ou hermética”; depois de desancar nos betos como se não houvesse amanhã, Valter Hugo Mãe recusou a ideia de MEC ter sido um conservador, preferindo antes um imagem de ruptura, que recorria a “uma malandrice inteligentíssima, uma subversão constante e aplicada a tudo”, e que terá sido “o primeiro passo para uma defesa do não me chateiem”. Em suma, “um erudito que de repente decide ser malcriado”, capaz de “debater a contemporaneidade sem poeira”, e a quem “compraria os livros para resolver todos os meus problemas”.
Bruno Vieira Amaral destacou a obsessão de MEC pela originalidade, num processo que passaria por “encarar a escrita como uma tarefa muito séria e depois partir tudo. Todos nós, cronistas, nadamos no lago criado por Miguel Esteves Cardoso”. Prefere as crónicas antigas, onde descobre “a energia e a fome, a vitalidade e o atrevimento próprios da juventude”; Bárbara Reis elogiou, como uma das grandes qualidades da escrita de MEC, a sua leveza, num olhar elogioso para o tempo presente: “Não há uma palavra a mais. Nunca escreveu tão bem como hoje, é uma maravilha”.
“Devia haver um prazo de validade naquilo que se escreve”, começou por dizer MEC, referindo-se a uma entrevista onde ficou gravado que odiava o fenómeno MEC – as pazes estão, agora, mais do que feitas. Agradeceu ao pai o conselho de viver nas nuvens, “a fuga sem dinheiro e sem mapas. A pessoa que descola está noutra”. Recusa deixar-se vencer pela nostalgia, uma vez que “o presente é o que sobreviveu do passado”, tendo o grande defeito de não ser partilhável.
E qual será, afinal, a causa das coisas, o mais mítico título – e livro – por si escrito? A resposta chega como uma lição de vida: “Estamos rodeados de coisas boas, mais vale olhar. Todos temos a nossa terra, os nossos bairros, os nossos amigos, os nossos gatos, é a isso que temos de dar valor cá dentro. Aceitar a escolha que foi feita antes de nascermos. Ter alegria com isso. É essa a causa das coisas”.
Não faltaram conselhos para as novas gerações, como o abraçar do fracasso: “A minha vida tem sido uma série de grandes fracassos. Os fracassos custam mas são a melhor forma de mudar, uma boa desculpa. A coisa mais estúpida que se pode ter é medo do fracasso”. E quanto ao segredo para uma vida, será que há tal coisa? “O segredo da vida é ter um tempo longe das outras coisas”.
“A única coisa que não esperava era encontrar um monárquico”, lançou Carlos Quevedo, que estabeleceu com MEC “uma relação de amizade e cumplicidade”, entre o teatro – muito, mesmo muito Beckett – e o jornalismo, pedindo mais tarde que fosse escrita uma biografia sua em vida. “Os livros do Miguel não são para esquecer”; “O Independente nasce porque o Miguel Esteves Cardoso era o Ronaldo naquela altura”, apontou Pedro Boucherie Mendes, registando também o olhar atento de Paulo Portas na sua “contratação”. Um jornal que soube ocupr um espaço vazio na imprensa portuguesa, e que começou por ser um jornal “alternativo” para, depois de um ano morno, se tornar “mais politizado. O Independente foi um espaço de experimentação e de liberdade como talvez não tenham existido outros na imprensa a seguir ao 25 de Abril. O Miguel Esteves Cardoso é uma das grandes figuras da democracia em Portugal, porque conseguiu sempre ser livre e não alinhado”. O que fez com que as homenagens lhe tivessem passado ao lado, sendo esta a primeira feita à séria; João Pedro George “quis ser escritor desde que me lembro de ler o Miguel Esteves Cardoso”, numa descoberta de alguma forma ligada à descoberta do amor com a miúda que, num período de convalescença, lhe levou um exemplar de O Independente a uma cama de hospital. Construiu ainda uma ponte entre Eça de Queiroz e Miguel Esteves Cardoso, tanto no percurso literário como pelo uso de um vocabulário solto e sem pedregulhos. “O Miguel pegou na língua portuguesa e desempoeirou-a, com uma prosa que só tem músculo, sem gordura”.
“Um garimpeiro de preciosidades de músicas que cá não ouvíamos, que conseguia fazer-nos ouvir música só de lê-lo. Cheguei ao Miguel na esquina da música”. Palavras de Manuel Falcão sobre o lado musical de MEC, aalguém que a certa altura deu “o raro salto de querer ser também um editor, cometendo a heresia de editar Os Delfins, uma banda assumidamente pop”, então na Fundação Atlântica, editora que durou dois anos mas que fez render cada um dos dias. Uma editora que “nasceu de uma maneira de olhar para Portugal que era diferente. De olhar para uma banda e encená-la. Essa é que foi a provocação”; para Capicua, MEC “escreve crónicas como quem escreve canções”, ela que faz também da observação atenta do quotidiano a matéria prima dos seus versos; “O despertar da inquietação e da curiosidade”. Foi este o legado de MEC a Nuno Miguel Guedes, que começou por olhar para MEC como uma “figura remota e inacessível”, antes de este decidir assentar arraiais em Portugal, num momento temporal em que “ser português estava fora de moda. Havia palavras que estava proibidas”. E que, numa aventura “boa e bonita que como todas as belas aventuras teve um fim prematuro”, conseguiu recolher ensinamentos tão importantes quanto este: “O prazer da descoberta tem de ser um acto de liberdade”.
A 17ª Escritaria acontece em 2024, ainda em data por assinalar no calendário. Depois daquela que terá sido a edição mais pop da história, que parece ter aberto o caminho da reinvenção, quem sabe se não viajaremos até um outro continente, pondo um vinil a rodar em 45 rotações. Já se aceitam apostas e palpites.
Fotos oficiais da Escritaria.
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O Deus Me Livro viajou até Penafiel a convite da Escritaria.
2 Commentários
Chico Buarque
Era bom era 🙂