Chama-se “Bestiário de Kafka” (Bertand, 2016), mas poderia muito bem chamar-se “Jardim Zoológico de Franz Kafka“. Com selecção e organização de Álvaro Gonçalves, e apesar da ausência de leões, ursos ou girafas, passam por aqui cães, ratos, camelos, chacais ou símios, suficientes para abrir um pequeno Zoo de excentricidades.
A abrir esta selecção de onze contos temos aquele que foi, de entre os contos – ou novelas curtas – de Kafka, o seu grande feito: “A Transformação” – ou, como ficou inscrito na história da literatura, “A Metamorfose” -, exemplo maior da singularidade da violência familiar. Um texto que toca o fantástico para descrever a ascensão e queda de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante e sustento de uma família que, numa certa manhã, acorda transformado num monstruoso insecto. Da preocupação inicial familiar depressa se passa à indiferença e, mais tarde, ao ódio, que só se apazigua perante a visão redentora da morte.
Os restantes contos podem ser lidos como tubos de ensaio desta Metamorfose, mas todos eles gravitam em redor de uma mesma temática: criticar a sociedade e os homens que a compõem. Se, em “Chacais e Árabes”, se discorre em jeito de fábula sobre a má relação entre judeus e árabes, ” em “Um Cruzamento” apresenta-se o homem como um ser duplo, capaz dos actos mais cobardes ou heróicos; se, em “Relatório a uma Academia”, se aborda os desvios da supostamente invisível Justiça – algo que Kafka explorou de forma absoluta e categórica em “O Processo” -, em “Investigações de um Cão” sente-se uma auto-crítica religiosa e, também, um exercício sumativo de introspecção.
Não sendo um livro essencial de Kafka – apesar de conter o essencial “A Metamorfose” -, “Bestiário de Kafka” contém alguns dos elementos que viriam a cruzar as grandes obras deixadas à Literatura pelo escritor checo.
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