“Uma das minhas primeiras memórias de infância é de uma professora. Não era uma professora qualquer, talvez só na aparência”. Começa assim o relato de Betina Anton em “Baviera Tropical” (Casa das Letras, 2024), um livro que nos transporta para os 34 anos em que Josef Mengele viveu escondido depois da Segunda Guerra Mundial e os pelo menos 18 passados no Brasil, sob a protecção de Tante Liselotte, uma professora que era muito mais que tal.
Betina Anton revela como Josef Mengele, conhecido como o “anjo da morte” ou o “anjo branco”, o médico de Auschwitz notabilizado pelo seu papel na selecção dos recém-chegados que iam para as câmaras de gás e por experiências médicas de extraordinário sadismo, acabou os seus dias de forma pacifica e tranquila, rodeado por pessoas que, se inicialmente podiam não saber quem era, quando o descobriram a ele se mantiveram ligadas e protectoras. O que poderá explicar tal, quando não se percebe qualquer vinculação ideológica ou política? Como poderá Mengele ter sobrevivido aos caçadores de nazis e às polícias secretas de tantos países, empenhadas em descobri-lo?
Mais do que as selecções de prisioneiros que deviam morrer nas câmaras de gás e os que ainda podiam servir para trabalhar, a procura de gémeos, pessoas com nanismo e outras condições para usá-las como cobaias humanas nas suas experiências, foi a divulgação das experiências perversas com estes seres humanos que o tonou conhecido em todo o mundo. À época, no imaginário popular foi surgindo o retrato de um pseudo-cientista, capaz de tudo para aprimorar uma raça que dominaria o mundo. Essa imagem reflectiu-se de diversas formas na indústria cultural mundial. Em 1976, Mengele tornou-se personagem de ficção no livro do escritor Ira Levin, “Os Meninos do Brasil”; dois anos mais tarde, a obra foi adaptada ao cinema num filme com o mesmo nome, nomeado para os Óscares; uma década depois, é transformado numa letra de música de thrash metal, pela banda americana Slayer. Numa outra dimensão, para a historiadora alemã Carole Sachse, o que Mengel fez correspondeu a uma orgia cientificamente sem sentido, por alguém que coleccionava esqueletos de judeus, embriões humanos e corpos de recém-nascidos mortos.
Agora, Betina Anton apresenta-nos um relato jornalístico, factual, sustentado em mais de dez páginas de fontes, referências bibliográficas, arquivos de imprensa, sites, documentários e entrevistas, profundamente pungente e envolvente. Como jornalista experiente, Betina foi atrás da história de Mengele no Brasil. Fê-lo ao longo de seis anos, no decurso dos quais desvendou a sua vida a partir do que já se encontrava escrito, para depois procurar documentos e pessoas que estiveram próximas dele, entre as quais a própria Tante Liselotte, a pessoa mais habilitada para contar o que tinha acontecido durante os anos em que Mengele viveu no Brasil. Pelo entremeio falou com antigos conhecidos de Mengele, pessoas envolvidas na sua perseguição, especialistas de várias áreas e vítimas, como Eva Mozes Kor, uma das gémeas que sobreviveram às crueldades de Mengele e dedicou as suas últimas décadas a procurar pelo mundo outros gémeos como ela ainda vivos, encontrando 122.
Depois de, em 1985, o esqueleto de Mengele ter sido encontrado no Brasil e do caso se tornar um escândalo mundial, não havia registo de mais informação. Ainda assim, Betina avança com uma investigação que a leva até os antigos funcionários da escola onde Liselotte leccionara e onde ela própria estudara. A partir daí, recolhe peças e encaixa-as, completando um puzzle inimaginável.
“Baviera Tropical” é uma obra de leitura obrigatória para que a memória não esfume os registos das atrocidades cometidas por Mengele e pelos que o rodeavam. É, também, um apelo a uma reflexão mais profunda e à expressão de desconforto, pela passividade e pela complacência dos que, sabendo-o, se demitem da denúncia ou tão só da censura, independentemente da forma como esta se fizesse sentir.
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