“Se no século XX da nossa era são possíveis epidemias de ignorância e crueldade à escala mundial, se escravatura, genocídio e terror de massas são possíveis; se o mundo consagra mais esforços à criação de instrumentos de morte do que à educação e à saúde, podemos sinceramente perguntar de que espécie de progresso falamos.”
“Bábi Iar” (Livros do Brasil, 2022), de Anatóli Kuznetsov, é tudo aquilo que não se deseja ver relatado: comportamentos de nacionalismo divisionista, invasões, fome e genocídio. É um livro sobre a Ucrânia, na transição do poder bolchevique para a ocupação nazi (1941-1943), mas acima de tudo um livro sobre a natureza humana, de leitura obrigatória para que a memória do passado não deixe de estar presente no futuro que se constrói hoje.
O autor, Anatóli Kuznetsov, nasceu em Kiev, na Ucrânia, a 18 de agosto de 1929, filho de pai russo e mãe ucraniana. Aos catorze anos, começou a registar os acontecimentos que testemunhou sobre o massacre de Bábi Iar, perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. A primeira edição do seu livro ocorreu em 1966, numa versão censurada pelas autoridades russas. O texto integral seria publicado em 1970, sob o pseudónimo A. Anatoli, já após a fuga do autor para Londres, onde trabalhou como repórter para a Radio Liberty. Faleceu na capital britânica em 1979.
Entre os 12 e os 14 anos, Anatóli Kuznetsov vivia com a família em Kiev, e juntou notas sobre o que aconteceu em Bábi Iar, local onde brincara anteriormente. Quando pretendeu publicá-las sob o domínio da União Soviética, viu-se obrigado a aceitar a censura e a expurgação do texto do que foi considerado de “tralha anti-soviética” – isto é, tudo aquilo que se referia a questões de religiosidade, críticas à coletivização forçada dos campos e a outras manifestações de totalitarismo soviético, que provocaram a morte de milhares de ucranianos. Ao exilar-se no Reino Unido, publicou a versão completa do livro, já com acrescentos das partes censuradas. Esta versão, agora publicada pela editora Livros do Brasil, é a única cuja autoria Anatóli Kuznetsov assumiu. De forma a permitir aos leitores identificar as diferenças entre a versão integral do texto e a sua primeira versão censurada, na presente edição são destacadas a bold as passagens que foram acrescentadas ou significativamente alteradas pelo autor.
O relato baseia-se em documentos e testemunhos de sobreviventes, e do que o próprio autor viu e ouviu, passando em revista os primeiros massacres de judeus, aos quais se sucederam os de não-judeus, o sistema de campos de concentração criado pelos nazis e, na fase final de Bábi Iar, a destruição das provas do crime.
“Será que é verdade que a única coisa que os homens aprenderam a fazer na perfeição ao longo da história é a matarem-se uns aos outros?“
Trata-se de um livro-documento de um valor e oportunidade extraordinários, enriquecido, nesta edição portuguesa, pela introdução feita pela historiadora Irene Flunser Pimentel, sob o título “Uma reedição a saudar”, na qual os mais incautos encontram um generoso enquadramento histórico e político do relato que se segue e um ampliado apelo à reflexão individual. Constrangedoramente, ao longo do relato na primeira pessoa, o próprio autor realiza paragens, para lembrar ao leitor que nada do que é dito é ficção, ainda que antecipe a tentação de nos socorremos de mecanismos de despersonalização neste mundo que constrange.
Por último, recomenda-se que a leitura possa ser acompanhada da audição da Sinfonia nº 13 em Si bemol menor de Dmitri Shostakovich, Op. 113 (Babi Yar), composta em 1962 sobre textos do poeta ucraniano Yevgeny Yevtushenko. A leitura do seu poema Babi Yar, um ataque ao anti-semitismo, levou o compositor a escrever um oratório em defesa das minorias dos povos oprimidos, sendo os judeus seu exemplo mais representativo.
“Século após século, as pessoas são mortas e apodrecem na terra, hoje por um motivo e amanhã por outro, e depois constatamos que foi em vão e que deviam ter morrido por outra razão bem diferente…“
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