Masaoka Shiki nasceu a 14 de Outubro de 1867 na cidade de Matsuyama, no noroeste da ilha de Shikoku, recebendo, então, Tsunemori como nome próprio. Com um pai que combinava o ofício de samurai com uma propensão para a bebida, e uma mãe culta, filha mais velha de um erudito confuciano, coube a Ohara Kanzan, o avô, agir como a figura masculina proeminente. Um homem conservador, fechado à nova corrente de abrir o país às influências vindas de outros países do mundo – a era Meiji. Foi o avô que apresentou a Masaoka Shiki a cultura chinesa clássica e o legado poético chinês, que o neto decidiu abandonar na adolescência – assim como o formalismo social e filosófico inerente ao confucionismo.
Aos 13 anos funda, com amigos, a Sociedade de Amantes da poesia, começando a interessar-se por política por volta de 1882. Acabará por mudar-se para Tóquio, onde consegue uma bolsa de estudos para filhos de antigos samurais e, da ideia inicial de enveredar por Direito, decide-se antes pela Filosofia, acabando por não passar no exame de admissão – optará por Estética Criativa.
Em 1888 acabará por adoptar o pseudónimo literário de “Shiki”, palavra chinesa para cuco. Um animal que, segundo a lenda, “cospe sangue enquanto canta”, o que assenta na perfeição à condição do poeta – Shiki morrerá de tuberculose em 1902, sem chegar a completar 34 anos.
Segundo Joaquim M. Palma, responsável pela selecção, organização e versões portuguesas dos haikus que compõem “Aves dormindo enquanto flutuam” (Assírio & Alvim, 2021), o falhanço académico de Masaoka Shiki “diz muito das atitudes próprias de um samurai: desprezo pelos bens materiais e entrega pessoal a causas consideradas nobres”. Tal como a reforma dos haikus, que Shiki transformou numa arte séria e respeitada. Só em 1893 escreve cerca de 4 mil haikus e, quando já confinado à cama, aguardando estoicamente a morte, tem ainda energia para reformar uma outra forma poética – o poema tanka. Regressando aos haiikus, foi ele o responsável pelo seu baptismo, uma vez que o termo não existia ainda.
Na recta final dedicou-se a escrever alguns diários, dando à sua obra derradeira um título bem curioso: “Uma cama de enfermo com seis pés de comprimento”. Uma obra-súmula, onde consegue ainda descobrir-se algum sentido de humor – sobretudo quando entra em cena a religião -, revelando uma perspectiva de vida baseada na simplicidade e na espontaneidade.
A presente edição de “Aves dormindo enquanto flutuam”, servida pela Assírio & Alvim em capa dura, reúne 1000 haikus escritos por Masaoka Shiki – terá escrito cerca de 20000, sendo dele o legado poeta mais extenso de entre os grandes poetas do período clássico. Uma edição que não obedece a critérios cronológicos, com excepção para os últimos três versos, os derradeiros escritos pela mão de Shiki. O tradutor refere a dificuldade da multiplicidade de significados de várias palavras japonesas, o que torna a tradução, em qualquer língua ocidental, “uma simples e não definitiva versão” – são muitas as notas de rodapé que encontramos nesta edição bilingue.
Nestes mil haikus, onde é notório o fascínio de Shiki por dióspiros, abundam as cerejeiras, bem como as noites de lua e neblina. Não falta a marotice (uma mulher/entre os homens/o calor aumenta), sonhos poéticos (livros de poesia pelo chão/e eu no meio deles/a dormir a sesta), espantalhos vários (o espantalho/com olhos e nariz/põe o mundo a flutuar), lemas de vida (apenas vagabundear/apenas desfrutar/tranquilamente), uma natureza imparável e senhora do seu nariz (sem a ajuda de ninguém/a erva reverdece/a flor floresce), um diário de uma saúde frágil (algo no meu peito/me abandona -/lágrimas na rede mosquiteira) ou, ainda, um belo epitáfio:
no meu epitáfio se dirá
que eu gostava de haikus
e de diospiros
Com a saída desta antologia, chega ao fim um ciclo de edições da Assírio & Alvim dedicadas ao grupo de poetas que ficou conhecido por «Os quatro Grandes da Poesia Haiku Japonesa» – Matsuo Bashô (O Eremita Viajante, 2016), Kobayashi Issa (Os Animais, 2019) e Yosa Buson (Os Quatro Rostos do Mundo, 2020) -, abrangendo-se um arco temporal que vai do século XVII a inícios do século XX.
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