“A sátira é uma espécie de espelho, onde todos vêem tudo menos a si próprios”, assim o disse um dos grandes mestres da sátira. Falamos de Jonathan Swift, que a história guardou como um dos maiores escritores satíricos de língua inglesa do século XVIII.
O seu livro mais célebre, “As Viagens de Gulliver” (Guerra & Paz, 2017), foi lançado em 1726, e depressa se tornou um fenómeno de vendas. Nele se contam as viagens e peripécias improváveis de Lemuel Gulliver, afável cavalheiro inglês com queda para aventuras mirabolantes. Os enredos e incidentes de Gulliver serviram de veículo para o autor atacar com ironia feroz os pressupostos das sociedades humanas e, muito particularmente, a sociedade britânica na qual viveu.
São quatro as viagens enumeradas por Gulliver nas suas memórias, todas elas partindo de um qualquer infortúnio que coloca o autor abandonado à sua sorte num obscuro território inexplorado.
A primeira viagem – a mais conhecida – leva-o a Lilliput, onde se descobre cativo de um povo de homens minúsculos, para quem Gulliver se afigura um “homem-montanha” aterrador. Depressa o diminuto povo se serve da enormidade do inglês para trabalho braçal e, depois, como potente arma contra o reino vizinho de Blefuscu. Gulliver acaba por cair em desgraça junto dos liliputianos, isto depois de apagar um fogo no palácio urinando para cima dele – acto que não cai bem junto da corte do Reino.
O desafortunado britânico consegue regressar à sua amada pátria, e pouco tempo passa até que se encontre de novo em viagem. Desta vez quis o destino que fosse parar a uma terra em que é ele que é minúsculo, comparado com os gigantes que habitam o reino de Brobdingnag. Após uma série de perigosos encontros com animais de grande escala, Gulliver torna-se uma atracção famosa na sociedade dos gigantes – um inusitado pássaro humano, preso numa gaiola.
A terceira viagem leva Gulliver a uma ilha voadora – uma ilha onde as pessoas vivem com a cabeça nas nuvens, imersos em filosofias abstractas e pouco práticas, enquanto o povo, cá em baixo, luta com preocupações mais prosaicas como a fome e a miséria.
A viagem final transporta o herói rumo a uma terra utópica, habitada por cavalos falantes – os impronunciáveis Houyhnhnms. São eles os reis e senhores desse reino, governando sobre uma raça de selvagens sub-humanos, chamados Yahoos.
Os formidáveis equídeos construíram uma sociedade quimérica, onde a violência, a mesquinhez ou a ganância são conceitos desconhecidos. Gulliver sente-se como um intruso neste mundo de harmonia – a sua condição humana torna-o indigno. Os Houyhnhnms não o podem aceitar como igual, e o viajante acaba em Inglaterra, cheio de amargura, preferindo passar o tempo com os seus cavalos, mais do que com a família.
Swift foi um autor de muitos talentos, contraditório e corrosivo ao máximo, imaginativo e enigmático em igual medida. Cada um dos mundos que Gulliver visita representa um aspecto da sociedade contemporânea do autor, exagerado ao ponto da caricatura. Nenhuma fatia da sociedade é poupada às alfinetadas: há inúmeras referências ao cinismo dos políticos, à vaidade das damas da época, à falta de carácter dos advogados, ao irrealismo dos académicos e, por fim, à própria raça humana, representada através dos estúpidos e selváticos Yahoos. Tudo destilado com sentido de humor ácido e uma imaginação desabrida que eleva “As Viagens de Gulliver” à condição de clássico, amado por miúdos e graúdos há quase três séculos.
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Adorei seu resumo
Adorei seu resumo ficou ótimo!