“As Metamorfoses do Elefante” (Guerra & Paz, 2022), do angolano José Luís Mendonça, é o terceiro livro da nova colecção romances de guerra e paz, com o selo da editora Guerra & Paz. Uma narrativa de sonhos e pesadelos, que começa com um surto pandémico de riso em Angola. Com uma forte componente simbólica, o autor mostra como as instituições não estão preparadas para deixarem de ser necessárias. Sendo o riso um símbolo da tolerância, com a qual acabariam os conflitos de toda a espécie, como iriam as grandes potências sustentar todos aqueles que, directa e indirectamente, dependem da indústria de armamento e munições? A solução? Coser a boca dos infectados e criar um gueto onde os reter, evitando a propagação da ameaça, já com visibilidade mundial. Acabaram por ser sete os dias de pandemia do vírus do riso, uma semana sem crimes em que que até a escassez de comida foi gerida sem disputas, pacífica e equitativamente. A linguagem é figurativa mas a critica sente-se acutilante, especialmente dirigida às instituições do poder político e aos impasses contemporâneos do país.
“Se este surto virar pandemia, até os talibãs no Afeganistão, os palestinianos na Faixa de Gaza, os jihadistas do Iémen e da Al-Qaeda, os guerrilheiros do Boko Haram na Nigéria e todos os insurgentes desde o Sri Lanka até aos confins do planeta gargalhariam agarrados uns aos outros, ninguém mais conseguiria apontar a arma.”
Em simultâneo com a insólita pandemia, José Luís Mendonça oferece-nos um prodigioso retrato da história de Angola pós-colonial, feito com base em recursos metafóricos mas profundamente pungente, assumindo-se contrário ao amorfismo social e político. Partindo dos acontecimentos que marcaram o país na década de 70, o autor faz a ponte com a Angola actual, país que parece estar em guerra consigo próprio. Através de personagens que pulverizam a narrativa, é possível tomar contacto com situações de desaparecimento e de tortura, amplamente denunciadas pela Amnistia Internacional, acreditando-se que terão sido milhares entre aqueles que pretenderam ampliar e diversificar o movimento libertador, pós-colonialismo. A violência armada e as prisões arbitrárias, especialmente entre os jovens que expressaram a sua indignação e revolta, a falta de inclusão económica, política e cultural, a persistência de uma classe dominante com forte poder político e económico, estão presentes quando Tony Cainde chora a sua amada desaparecida, retrata a vida à sua volta e mostra como se sobrevive a todo o tipo de ameaças, mesmo as menos evidentes. No cômputo, uma forma de denunciar o drama escatológico de um povo que, depois do sonho da libertação colonial, permanece refém de uma tristeza ditada pelo jogo desigual da sobrevivência.
Ainda em Angola, década de 1970, na antecâmara da independência, o jovem Hermes Sussumuku prevê, em sete sonhos, um futuro de horrores para o país. O seu irmão, empenhado na luta pela libertação do povo angolano e esperançoso num futuro risonho, recusa-se a acreditar nas visões catastrofistas de Hermes. Mas as décadas seguintes vieram a dar razão aos sonhos premonitórios, com uma independência seguida de uma dolorosa guerra civil e sucessivas crises políticas, sociais e económicas.
Sete sonhos, distribuídos por sete capítulos do livro, cada qual precedido de uma proposta de música. Ouvi-las é um inegável upgrade no retrato que José Luís Mendonça traça do país, intensificando o poder onírico da sua narrativa.
Reconhecido com diversos prémios em Angola, nomeadamente pelos seus mais de trinta anos de obra poética, José Luís Mendonça refundou, em 2018, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, resgatando o legado dos precursores da literatura angolana. Escritor e jornalista, o autor, nascido em 1955, na província do Cuanza Norte, no Golungo Alto, licenciou-se em direito pela Faculdade de Direito, dedica-se hoje ao ensino da língua portuguesa, ao jornalismo e ao activisvismo cultural pelo fomento do livro e da leitura. No último dos sete capítulos de “As Metamorfoses do Elefante”, a referência musical reforça a expressão de um povo que continua a lutar contra a opressão, a fome e a perseguição.
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