Será que os dias consistem em imitar as acções dos outros, em repetir gestos observados, adaptando-os para sobreviver? Esta pode ser a questão central em torno da qual gravitam as vidas de Maria e de Alícia, e ainda de Carmen, mulheres presentes no romance de estreia de Elena Medel, “As Maravilhas” (D. Quixote, 2021).
Alícia, Maria e Carmen, três mulheres espanholas, em diferentes momentos e contextos sociais e políticos, retratam o peso da família, da descendência, do dinheiro e do poder. Duas delas são protagonistas e estruturantes dos dilemas existenciais que ainda hoje se colocam especialmente às mulheres: o dilema da escolha e do inevitável antagonismo entre a individualidade e a família, a sobrevivência e a coexistência com a subjugação ao determinismo da dependência.
São fracturantes e actuais as questões que, especialmente Maria e Alícia, representam. Maria aprendeu a respeitar o desejo alheio do silêncio; aprendeu a chorar discretamente e a abdicar de tudo aquilo que o dinheiro, que não tinha, lhe poderia proporcionar, incluindo o amor da filha que parira aos 16 anos e deixara para procurar uma vida melhor. Trinta anos depois, Alícia faz o mesmo caminho. Ambas revisitam as suas vidas, servindo-se de memórias selectivas, na juventude e na adultez, sempre na procura de identidade e de aceitação, combinação que se revela especialmente complexa e árdua. Partilham memórias familiares, os amigos e os espaços de ensaio como a escola e a rua. Falam de relações, dos homens que as tornaram mulheres e dos quais procuraram distância, exactamente para continuarem a ser mulheres com vontade própria. Muitas delas são memórias traumáticas, capazes de desviar rumos de vida. Ainda assim, são processadas e integradas na vida destas mulheres, que prosseguem e se reinventam, reconstruindo-se a cada acontecimento, com provas superadas numa trajectória que se revela tudo menos linear.
A linha temporal percorrida no romance de Elena Medel vai da ditadura franquista até à explosão do feminismo, permitindo um estreito contacto com a realidade espanhola, na clivagem entre o rural e o citadino, na relação entre classes sociais, na transição de um regime político rígido e retrógrado para uma vida diferente. Através destas mulheres é possível acompanhar a evolução da sociedade espanhola, a sua luta interior pela preservação da identidade nas relações que estabelecem, o poder conferido pelo estatuto económico, pela estratificação social, pela influência formal e, fundamentalmente, pela atitude de desafio, com a qual é possível camuflar inseguranças e prosseguir.
A narrativa de Elena Medel revela uma lucidez e uma maturidade que se adivinha projectiva ou, pelo menos, fortemente inspirada em experiências seguidas de perto, em ensaios de desafio pessoal e de superação.
Elena Medel Navarro, nascida em 1985 em Córdoba, é uma poetisa, romancista, crítica literária e editora espanhola. Dirige uma editora de poesia e, em 2020, publicou em Espanha este seu primeiro romance, já premiado e considerado um dos melhores livros em espanhol de 2020. Entretanto traduzido para mais de uma dezena de idiomas, tem granjeado elogios entre o público em geral, como entre pares. Quem acompanhou a última edição do festival literário Correntes d’ Escritas, teve oportunidade de testemunhar o sentir da autora e ansiar pela prossecução do seu sentido apurado e sensível, no retrato de questões de identidade.
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