Aixa de la Cruz é uma escritora e dramaturga espanhola, doutorada em Teoria Literária e Literatura Comparada, e considerada um dos talentos precoces do mundo da arte espanhola. “Herdeiras” (D. Quixote, 2024) é o seu sexto romance.
“A família não é mais do que um destino onde se cai de bruços e, à medida que se envelhece, um espaço simbólico onde se procuram culpados.”
“Herdeiras” representa a união entre quatro elementos de uma mesma família, a disputa visível e a luta interna com os seus mais recônditos medos, a ocultação de fragilidades e a procura de uma saída para vidas condicionadas pela dependência de fármacos, drogas, atenção ou tão só de encontro com a sua essência e o sentido da caminhada que as mantém em pé. Depois da avó se suicidar lhes deixar a casa onde vivera e fora encontrada sem vida, as quatro netas reúnem-se para decidir o futuro – o da casa e o delas próprias.
Duas irmãs, duas primas, quatro vidas absolutamente distintas e, ainda assim, a presença dos mesmos dilemas. Este é o primeiro plano da história, na qual se movimenta uma freelancer que vive com muito pouco dinheiro, sempre sob stresse, consumidora esporádica de drogas; uma médica, aparentemente mais sensata e racional, mas dominada pela obsessão de gerir e conter tudo o que se passa à sua volta, sobrevivendo com o ónus de ser a certinha; uma mãe recente, catalogada de louca após um surto psicótico pós-parto, mantendo-se fortemente condicionada por fármacos, combatendo as evidências do seu alheamento relativamente à sua própria vida e à do filho; por último, uma figura mística e fortemente existencialista, que se confronta com a dificuldade em manter-se fiel às ideias que sempre defendeu de liberdade e de auto-determinismo, gerindo com dificuldade o choque da perda deixada pela forma como a avó decidira deixar de existir. A relação entre elas começa por se revelar complexa, viciada pelos medos de cada uma, tóxica pelos vínculos que não foram alimentados, pelos silêncios e pela cobrança que está presente. Primeiro, de forma sublimar; depois, eclodindo e deixando visível os mais recônditos medos.
Todas em conjunto lutam contra o receio de que as doenças mentais possam ter algum determinismo genético, tendo como primeiro sinal o suicidio da avó e, depois, a percepção das suas próprias fragilidades e o limiar da sanidade de cada uma, ainda que ditado por diferentes fatores.
Aixa de la Cruz escreve um belíssimo romance sobre a família e as suas inevitáveis cargas, genéticas e emocionais, cosmo de átomos conflitantes, de ocorrências muitas vezes dramáticas e de mágoas insanáveis. Escreve igualmente um belíssimo, sustentado em informação sobre plantas mágicas e drogas perigosas, sobre saúde mental e gestão de traumas.
As quatro personagens principais competem pela preservação das suas identidades, pela sobrevivência ao alheamento ditado pelos consumos ou pelo aniquilamento emocional imposto pela racionalidade ou pelo misticismo. Ainda assim, todas procuram sobreviver à família enquanto dimensão saturada. Às suas lutas junta-se a memória e o legado, material e emocional, deixado por quem partiu. A herança de uma casa, ao género mausoléu, é pretexto para que cada uma reactive velhos diferendos, conteúdos incorpóreos, muitos deles memórias traumáticas que as colocam no limiar da normalidade ou da sanidade. Afinal, “todos temos segredos que gostaríamos de levar connosco para a mesa da autópsia”.
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