Na década de oitenta, a explosão do consumo de heroína e o surgimento da epidemia da sida tiveram um efeito devastador em toda uma geração de jovens. Quarenta anos depois da morte do seu tio Désiré, Anthony Passeron decidiu investigar a história silenciada da sua família e analisar o que no campo científico internacional corria em paralelo. O resultado é “As Crianças Adormecidas” (Livros do Brasil, 2025), uma narrativa comovente que entrelaça memórias íntimas, sociologia e história, olhando para o sofrimento solitário de uma família em particular e para a competição entre hospitais e centros de investigação franceses e norte-americanos, até à identificação, em 1983, de um vírus que matou milhões de pessoas em todo o mundo. Este é um retrato sóbrio de uma época de caos, vibrante com ânsias de liberdade, de expressão de orgulho, de viver o novo, perplexa com um terror desconhecido, uma dor indizível, um luto asfixiado pelo estigma.
Anthony Passeron compromete-se em escrever a história da sua família, nomeadamente a do seu tio que, no início dos anos ’80, é feito refém pela heroína, que entrou pela Europa acompanhada de um vírus mortal, insidioso e com crescimento exponencial um pouco por todo o mundo. Ao contar a história de Désiré, o irmão do pai, Passeron conta a história de todos os que sucumbiram nas mãos da droga e do HIV, resultando num retrato fiel do que França viveu no início de ambas as epidemias. O resultado é uma narrativa tão robusta quanto pessoal de um problema de saúde pública e, em simultâneo, a história de milhões de pessoas.
O livro divide-se em partes: a história do tio e da sua família, numa narração quiçá um pouco romanceada, é intercalada com a exposição de todo o processo de investigação sobre o vírus, desde que os primeiros sintomas são identificados até à compreensão total do seu funcionamento e de formas de o combater: expõe cuidadosamente a propagação da doença e da heroína, as dificuldades e os desafios clínicos, os impasses no processo e as falhas humanas, bem como o impacto devastador na sociedade. Com um sentido crítico apurado, o autor não deixa de tocar em temas muito prementes e quase demasiado sensíveis, como os interesses económicos e a luta de egos na comunidade médica. Tome-se, como exemplo, Peter Duesberg, virologista com enorme prestígio e reconhecimento na comunidade científica, que negou a relação entre o HIV e a sida, atrasando o processo na investigação clínica. Terá sido uma questão de ego?
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Nesta alternância entre a vida pessoal e a história expõe-se a intimidade pessoal e familiar, enquanto se analisa a perspectiva global, colectiva. Os homens abandonados ao seu fado, desprovidos de qualquer toque ou aproximação, afastados das suas vidas por receio de contaminação, tornados marginais aos olhos de todos os que os rodeavam. Como a prima de Passeron, filha de Désiré, que, ainda no primeiro ciclo, se tornou vítima de abusos verbais e de marginalização por parte dos colegas de escola e das suas famílias. A vergonha das famílias, enclausuradas em si mesmas. A dor encerrada no silêncio.
Com um enorme cuidado na apresentação de dados históricos e clínicos, Anthony Passeron peca pela ambiguidade com que conta a história do tio. Inicialmente, assume que não conhece pormenores da história de Désiré, mas propõe-se à reconstituição factual. Opta, pois, por pesquisar sobre o seu passado, nomeadamente junto de familiares, mas recorre frequentemente à ficção para reconstituir momentos e diálogos a que ninguém assistiu.
“As Crianças Adormecidas” é um livro poderoso, com um rigor histórico admirável e um cuidado imenso no retrato que é desenhado, embora deixe vontade de uma maior profundidade para o tornar indiscutivelmente visceral.
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