É costume dizer-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. No caso de Arsène Lupin, as imagens serviram de mote ao surgimento das palavras, e tudo à boleia de uma série televisiva, com Omar Sy no papel principal. Estreada este ano na plataforma Netflix – e já com duas temporadas -, Lupin foi uma das séries mais vistas este ano, tendo liderado o top diário de streamings em países como Portugal, Brasil, Argentina, Itália, Espanha, Holanda ou Suécia.
Aproveitando o sucesso da série – e o facto de os direitos de publicação estarem disponíveis a custo zero -, muitas foram as editoras nacionais que se dedicaram a publicar as aventuras de Arsène Lupin, personagem de ficção criado há mais de um século por Maurice Leblanc. Alguém que incorpora a perspicácia de Sherlock Holmes, a loucura romântica de Dom Quixote e o espírito travesso e popular de Robin Hood, ficando conhecido nas entradas das enciclopédias literárias como o cavalheiro-ladrão. Aliás, Sherlock Holmes é uma presença mais ou menos regular nas aventuras de Arsène Lupin, que para não criar confusões de identidade surge como Herlock Sholmes.
A colectânea de nove contos, inicialmente publicados na revista Je Sais Tout, resultou em diversas edições, que receberam títulos diferentes. A edição da Leya, com a lombada cozida, sem corte de guilhotina e as páginas por abrir, ao estilo de um manuscrito antigo, intitula-se “Ladrão de Casacas”, enquanto a Porto Editora optou por um “Cavalheiro Ladrão”, num design que serve de base aos diversos títulos que a editora já lançou e irá lançar. A Ideia-Fixa tinha já publicado esta edição em 2015, chamando-lhe então “Gentleman-gatuno”.
Trata-se do livro que serve de cartão-de-visita a Arsène Lupin, e que nos transporta até França no início do século XX, com a Belle Époque em alta e Paris chegando-se à frente como uma cidade cosmopolita, onde cultura e diversão são o prato principal de cada dia. É neste mundo que entra em cena Arséne Lupin, o ladrão dos mil disfarces, com tanto de carismático como de sedutor, onde a falta de escrúpulos se vê compensada pelo sentido de humor, a elegância e um código de honra bem diferente dos manuais.
Nestas nove primeiras histórias, viajamos num transatlântico, onde todos se divertem a adivinhar quem será Lupin, que terá subido a bordo com um ferimento; entramos no castelo feudal de Malaquis, uma fortaleza impenetrável – e recheada de tesouros -, que não parece ser um desafio complicado para Lupin, mesmo que se encontre na prisão. Afinal, “para Arséne Lupin existirão portas, pontes levadiças, muralhas?”; acompanhamos a crónica de uma fuga anunciada, vendo Lupin exposto pelos olhos do povo – “pela sua originalidade, a sua boa disposição, a sua diversidade, o seu génio inventivo e o mistério da sua vida” e da justiça – “uma mistura bizarra de inteligência e perversão, de imoralidade e generosidade”; procuramos o colar da rainha, onde um ladrão nos mostra que se pode voltar ao lugar onde se foi feliz; ficamos a conhecer a forma como Lupin e o narrador das aventuras se conheceram, tornando-se “o seu muito humilde, fiel e grato historiógrafo”; ficamos de olho no cofre da Sra. Imbert, onde através de um plano perfeito se ganha confiança e uma lição para a vida; descobrimos a pérola negra, numa história onde se aprende a “ser mais silencioso do que o silêncio, mais invisível do que a noite”; e, a terminar, assistimos ao primeiro assalto contra Herlock Sholmes, que gira à volta de dois livros antigos e da procura por um subterrâneo secreto.
“A Agulha Oca” (Porto Editora, 2021), publicado em 1909, transformou-se com o tempo no mais famoso livro de Maurice Leblanc. A trama arranca a cem à hora num castelo em Ouville-la-Rivière, “outrora residência abacial dos priores de Ambrumésy, mutilado pela Revolução, restaurado pelo conde de Gesvres, a quem pertencia há vinte anos”, e no qual este vive “com a sua filha Suzanne, uma criatura bela e frágil de cabelos louros, e a sua sobrinha Raymonde de Saint-Véran, que ele acolhera dois anos antes, depois de a morte simultânea do pai e da mãe a ter deixado orfã”. É aqui que vemos decorrer um roubo onde, aparentemente, nada foi roubado, acreditando-se que o assaltante terá sido atingido e se tenha escondido nas imediações. Um assaltante que, segundo Isidore Beautrelet, um aluno de Retórica disfarçado de jornalista, é precisamente Arséne Lupin. Na companhia de Ganimard, um “vasculhador, paciente e polícia calejado”, e também de Herlock Sholmes – que nutre um ódio de estimação por Lupin -, tudo fará para deitar as mãos a Arséne Lupin, o grande aventureiro, o rei dos ladrões, por quem não deixa de mostrar uma grande admiração: “Tudo o que ultrapassa a média merece ser admirado. E ele paira acima de tudo. Há nesse vôo uma riqueza de concepção, uma força, um poder, uma destreza e uma desenvoltura que me arrepiam”.
Numa perseguição implacável movida por Beautrelet, que parece conhecer demasiado bem o jogo de Lupin, haverão raptos, desaparecimentos, ameaças, ataques e mortes, tudo para descobrir onde se esconderá Lupin e, também, o misterioso lugar que há séculos tem servido para esconder a fortuna dos reis de França, desde a época de Júlio César até ao reinado de Luís XVI. Um livro muito bem desenhado onde, para lá de estar sempre um passo à frente dos adversários, Lupin mostra a sua costela de cavaleiro andante, tentando provar que nem sempre quem tem sorte ao jogo se estampa ao comprido nos jogos de amor.
“O Último Amor de Arsène Lupin” (Asa, 2021) é um romance póstumo, inédito em Portugal, que nos mostra um Lupin muito diferente. O exemplar dactilografado foi encontrado sem ter sido corrigido na totalidade por Leblanc, mas acabou por ser editado sem qualquer modificação, por acordo com a família e as edições Balland. Um livro no qual Lupin, já numa fase avançada da vida e com um largo mealheiro, exerce a função de pedagogo e mestre, até entrar em cena Cora de Lerne, que parece estar destinada a usar a coroa de rainha. Intriga, pistas falsas, traições e muito jogo de cintura, na história que serviu de despedida ao cavalheiro-ladrão.
Maurice Leblanc nasceu a 11 de Dezembro de 1864, em Rouen, no seio de uma família abastada. Apesar das oportunidades de estudo em França, na Alemanha ou em Itália, decidiu interromper o curso de Direito para se tornar jornalista e escritor, depois de uma curta experiência de trabalho na empresa familiar. Estabeleceu-se como repórter policial do jornal L’Écho de Paris e publicou Une femme, um romance psicológico, aos 23 anos, bem acolhido pela crítica mas ignorado pelos leitores, assim como o foram os livros seguintes. Foi Arséne Lupin que o tornou famoso, personagem que surgiu de um convite do editor da revista Je sais tout, para publicar histórias de um detective que pudesse rivalizar com o perspicaz, algo sério e muito brit Sherlock Holmes. A grande inspiração para Lupin acabou por ser Marius Jacob, um anarquista francês considerado um ladrão inteligente, com sentido de humor e generosidade. Morreu de pneumonia em 1941, aos 76 anos, em Perpignan, para onde se retirara em 1939, depois da invasão alemã. Vários dos seus vinte e quatro romances policiais foram adaptados ao cinema e ao teatro.
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