Há cerca de dez anos, o jornalista e escritor brasileiro Lira Neto iniciou um projecto de elaboração da biografia de Maurício de Nassau, uma figura histórica do século XVII, associada ao período da ocupação do Recife pelos Países Baixos. Porém, durante a pesquisa documental, a saga da comunidade judaica que habitava nesse território atraiu a sua atenção e levou-o a reorientar o trabalho noutro sentido. O resultado é “Arrancados da Terra” (Objectiva, 2021), uma história fascinante dos judeus sefarditas que, após serem “expulsos de Portugal pela Inquisição, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova Iorque“.
Sefarad era o nome hebraico da Península Ibérica, pelo que os judeus daí provenientes eram designados por sefarditas. Em Portugal e Espanha, os indícios da sua presença são tão antigos quanto os vestígios de anti-semitismo, com a atitude dos monarcas a oscilar ao longo dos tempos entre a tolerância oportunista e a intransigência. Esta atingiu um pico no final do século XV, com a expulsão dos que pretendessem manter a sua fé e a perseguição implacável daqueles que, não querendo ou não podendo partir, resistiam à conversão ao catolicismo, continuando a praticar os seus rituais em segredo. Foi nesta altura que ocorreu um êxodo para os Países Baixos, sobretudo para Amesterdão, uma metrópole cosmopolita com um quotidiano liberal que chocava os outros europeus e oferecia relativa liberdade de culto. Aí, a comunidade judaica lusitana tornou-se numerosa, abastada e influente.
Porém, a vida nesta “Jerusalém do Norte” não estava isenta de problemas. As autoridades judaicas da comunidade não aceitavam bem os livres-pensadores, com consequências que iam desde a queima dos seus livros a penas de excomunhão. Além disso, nem todos os migrantes conseguiam ascender socialmente e, sobretudo em momentos de instabilidade política e económica, continuavam a sofrer devido a velhos preconceitos.
Com a ocupação neerlandesa do Brasil, foi imaginada uma nova utopia, a “Jerusalém dos Trópicos”, onde muitos tentaram recomeçar a vida pela segunda vez, integrando-se na pujante economia açucareira, mas a reconquista portuguesa trouxe de novo a sanha persecutória da Inquisição, que nem o Rei D. João IV conseguia refrear, apesar do seu interesse em preservar uma comunidade que promovia um grande desenvolvimento económico em todos os países onde se estabelecia. Deixando vestígios de costumes judaicos que persistem até hoje na cultura popular nordestina, muitos regressaram aos Países Baixos, enquanto uns poucos arriscaram partir para o desconhecido e intervieram nos primórdios daquela que viria a ser a cidade de Nova Iorque, embora parte da sua história ainda se encontre envolta em mistério.
Esta epopeia admirável, repleta de episódios sangrentos, é narrada de forma cativante, com recurso a trajectórias individuais e respectivo enquadramento no panorama alargado da História. Salienta-se que o autor reside desde 2018 em Portugal e consultou documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo para aprofundar a sua investigação. Na nota à edição portuguesa – que recebeu pequenas adaptações de linguagem e remeteu dezenas de páginas de notas para um endereço electrónico –, Lira Neto assume a contemporaneidade da sua obra, dedicada “a todos os desterrados, retirantes, refugiados, apátridas, proscritos, exilados, imigrantes, degredados, foragidos, expatriados, fugitivos e desenraizados do mundo“, num tempo em que permanece viva “a construção ideológica de inimigos supostamente ameaçadores, sempre por meio da demonização do Outro“.
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[…] Em prefácio à edição portuguesa de Arrancados da Terra, o autor destaca que um dos elementos mais relevantes mobilizados pelo texto é uma crítica de todos os processos sociais de repulsa da alteridade, recusa da diferença (e do direito à esta), algo crucial num tempo como o nosso, onde obscurantismos, negacionismos e fascismos ainda se utilizam do nome de um deus-ferramenta para “a construção ideológica de inimigos supostamente ameaçadores, sempre por meio da demonização do Outro“ (Fonte: <Deus me Livro>. […]