Teju Cole fala como escreve: a um ritmo compassado, como quem caminha de mãos nos bolsos atento a tudo o que o rodeia, na recolha de fragmentos que acabarão transformados num momento de escrita, em snaphots ou transposto para uma das suas (muitas) playlists criadas no spotify e que estão ao alcance do ouvido de todos.
Nascido nos Estados Unidos e com pais nigerianos, Teju Cole é escritor, historiador e fotógrafo, alguém que um dia esteve perto de seguir o mundo da medicina. Perdeu-se um médico mas ganhou-se um escritor cirurgião, atento ao bulício do mundo, o qual capta reduzindo a velocidade dos seus passos.
Em “Blind Spot”, livro de 2017, Teju Cole juntou 150 fotografias, tiradas em 60 diferentes lugares de 20 países diferentes, fazendo corresponder a cada imagem uma pequena vinheta literária, uma meditação que vai muito para lá da imagem por ele congelada. No universo dos romances, “Todos os dias são bons para roubar” (Quetzal, 2015) foi a introdução ao seu estilo minimalista, que alia a frieza informativa de uma reportagem a uma linguagem literária carregada de símbolos (como escreveu por aqui Nelson Ferreira). Já em “Cidade Aberta” (Quetzal, 2013), para lá de Baudelaire e da ideia de solidão, surgem outros ecos, como o desejo de liberdade de Thoreau ou a melancolia microscópica de Sebald, resultando numa autobiografia em movimento que tem a história da música clássica a servir de banda sonora.
Entrevistado por Hugo Gonçalves na edição deste ano do Arquipélago de Escritores (que decorreu entre os dias 14 e 17 deste mês), Teju Cole praticamente apresentou uma masterclass sobre como desacelerar nestes imparáveis tempos modernos, algo que tenta transmitir aos seus alunos de escrita enquanto trata de lhes abrir a porta ao difícil ofício da literatura: “O que mais digo aos meus alunos é que é algo difícil, que requer concentração e presença. A cultura é um pouco avessa a isso, por ser muito acelerada e emproada consigo mesmo. Não há receita para o ofício da escrita, talvez estar atento ao que nos cerca. O que fazemos é um pouco estar a lavar algo que antes disso já estava limpo”.
Em tempos ferveroso adepto do twitter, sonhando com a esperança da ligação ao outro, saltou fora do barco quando se deu conta do despoletar de uma agressividade extrema, onde todos parecem falar ao mesmo tempo. “A conversa mais importante a ter é sempre entre ti e a tua vida. Isso não acontece no facebook. Politicamente sou progressivo, mas também extremista. E há algo que me ocorre a toda a hora: o que significa ser um pensador independente? Não espero que concordem comigo sempre, nem mesmo eu faço isso. Olhando para Galileu, somos afortunados. Estranhamente, nas minhas aulas, o que mais ouço quando falo da importância da privacidade, é what`s the big deal?. Ninguém parece estar muito preocupado”.
Um mundo de conexões e desconexões onde os escritores têm, apesar de tudo, de viver pelo menos em duas dimensões: “Todos os escritores e artistas têm de lidar com a contradição de estar no mundo e do seu trabalho”. Dá depois o exemplo de Montaigne que, a certa altura, se refugiou do mundo na sua torre. Ainda assim, Teju prefere adoptar uma postura mista: “Sou um extrovertido introvertido, vivo nessa contradição”.
Para o escritor americano, a grande arte tem sempre sabido sobreviver à falta de comodidades, defendendo que todas as suas obras maiores são aquelas que foram contemporâneas: “Há duas semanas estávamos a falar da Ilíada. Homero não teve necessidade de qualquer retiro ou de ter ar condicionado. Ninguém lhe batia à porta para anunciar que o jantar estava na mesa. Talvez vivesse sem muito conforto. A grande questão da arte é que todos os seus grandes trabalhos foram sempre contemporâneos. Cada geração cria os seus próprios heróis. Os grandes artistas surgem do nada, apenas emergem. Podem vir da paz ou da guerra. Disso são exemplo os poetas polacos, que surgiram numa altura em que vinte e cinco por cento da população do país foi aniquilada”.
Hugo Gonçalves fala da ambiguidade e incerteza como duas características da obra de Cole, escritor que parece olhar para o mundo como um lugar onde todas as coisas aguardam pelo sopro da criação: “As cidades são importantes para mim, mas o mais importante é o rasto do que lá acontece. Gosto de pensar nas cidades como paisagens (landscapes) que têm em si uma carga. É esse e o núcleo do meu trabalho. Até mesmo um objecto não e inanimado. Por essa razão, o trabalho do escritor e do fotógrafo é o de acordar o que está adormecido numa paisagem, num objecto ou numa pessoa”.
Assim como Dulce Maria Cardoso referiu o tempo da não escrita como algo de essencial, também Cole defende a necessidade do não fazer como motor criativo: “Nos meus trabalhos a procrastinação desempenha um papel importante. “Blindspot”, por exemplo, partiu da ideia de ter um arquivista a descobrir as fotos e a contar histórias sobre elas. Preciso de estar sempre a fazer algo que não seja o verdadeiro trabalho, mas que por vezes acaba por se revelar o verdadeiro trabalho. A intensidade e o interesse têm de comandar as coisas”.
Questionado sobre o facto de muito boa gente nos servir diariamente os pratos que come em histórias do Instagram, Teju Cole falou do lado ilógico mas necessário da cultura, onde tudo já foi inventado e se move em círculos e modas temporais: “A cultura nem sempre tem uma lógica. Agora é comum tirarem-se selfies ou fotografar-se a comida. Nos anos setenta, um dos pioneiros da fotografia fotografava esquinas, quartos de hotel, snapshots sem interesse aparente. Até a Factory e Andy Warhol terem entrado em cena. O que era ridículo e impensável numa geração passa a ser algo importante ou mesmo banal para uma outra. Muitas pessoas fotografam no instagram e, ainda assim, é fantástico como ainda se podem criar coisas fantásticas e originais com a fotografia”.
Segue-se a inevitável questão actual americana, que Cole acaba por ampliar a um passado recente, lançando possíveis pistas para o futuro e impelindo-nos a olhar para a sua literatura como um lugar da hiperconsciência: “As coisas estão desconfortáveis e stressantes na América. Trump é vulgar, idiota e demoníaco. Ganhou a tripla coroa. Bush era tudo isso menos vulgar. Mas o importante é mesmo confrontarmos a natureza colonial americana. Durante o mandado de Obama, por exemplo, três milhões de pessoas foram deportadas. Temos de pensar muito a sério no que podemos fazer uns pelos outros. Na responsabilidade que temos perante este colapso do planeta. Na ideia de um futuro alternativo possível. A distracção a tudo isso não acontece apenas com Trump, mas também com os media. É tudo um circo para eles. Trump cometeu crimes maiores do que os de Nixon. Como seres humanos, podemos imaginar outros futuros. Podemos regressar aos lugares de Miles Davies, Martin Luther King e John Lennon”. So be it.
Fotos: Luísa Velez
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