Radicado em Portugal há mais de 30 anos, Richard Zenith é escritor, tradutor, investigador e, no que toca à vida e obra de Fernando Pessoa, um cinturão negro literário (se houvesse tal coisa para pôr à cintura). Entre muitas outras coisas, foi o organizador do “Livro do Desassossego” e de outras obras de Pessoa, algumas em parceria com Fernando Cabral Martins, publicadas pela Assírio & Alvim; publicou uma fotobiografia de Pessoa, em parceria com Joaquim Vieira; e foi co-comissário da exposição “Fernando Pessoa: Plural Como o Universo” (São Paulo, 2010; Rio de Janeiro, 2011; Lisboa, 2012). Fragmentos de um extenso currículo que, em 2012, lhe valeu a entrega do Prémio Fernando Pessoa.
Na recente edição do Arquipélago de Escritores, Richard Zenith esteve na Sede do Alpendre, em Angra do Heroísmo, para falar aos leitores sobre O Fernando que se Tornou Pessoa. Numa entrevista conduzida por Andreia Fernandes (responsável de Marketing e Comunicação da empresa Terauto), recuámos até Maio de 1902, momento em que Pessoa, então com 13 anos, passou nove dias na ilha, tendo um surto de meningite infantil obrigado a encurtar a estadia. Uma curta mas emocional estadia, que estreitou os laços com os tios, que tiveram um papel importante na sua formação enquanto homem e escritor. Segundo Zenith, terá sido com o tio João que Pessoa ensaiou as primeiras aventuras no mundo da heteronímia, inventando personagens políticos e animais fantásticos.
Aproveitando a sua passagem por Angra, Richard Zenith relembrou o edifício abandonado na Rua da Palha, no qual viviam os tios de Pessoa, uma oportunidade para o Município ou outra entidade se chegarem a frente. Não para idolatrar Pessoa, antes para criar algo mais vasto – quem sabe um Centro Cultural -, onde a presença de Pessoa também se fizesse sentir.
Mas nem só destes nove dias se fez esta entrevista, que acabou por ser uma pequena masterclass sobre Fernando Pessoa e o seu tempo: os tempos instáveis do mapa cor de rosa e do Ultimato Britânico, onde Lisboa tentava “apanhar o último comboio para a modernidade” e o Partido Republicano crescia a olhos vistos; as mortes do pai e do irmão e a demência da avó, experiências que o levaram a ter um contacto precoce com a morte e a questionar muito cedo o que é o ser humano e a sua fragilidade; a passagem pela África do Sul e a cidade de Durban, de onde regressou com a ambição de ser um poeta inglês. “Quando regressou a Portugal, passou três anos a escrever apenas na língua inglesa. Mas aqui a sua poesia falha. O seu inglês era demasiado literário para servir a poesia. Faltava-lhe sentir em inglês aquilo que sentia em português. A melhor poesia de Pessoa em inglês foi escrita em português”.
Zenith recordou também os jornais pelos quais Pessoa passou, como o Palrador, onde criou uma equipa fictícia de jornalistas, experiência que lhe viria a dar um valente “empurrão literário”. Ainda que, por volta de 1902 ou 1903, Pessoa estivesse ainda a escrever por mimetismo, “um pouco como os pintores faziam”.
Desde que volta definitivamente a Portugal, em 1905, Pessoa quase já não sairá de Lisboa. “Onde ele viajava realmente era na sua imaginação”, disse Zenith, recordando o sonho nunca cumprido de Pessoa em conhecer Londres, apesar de não terem faltado oportunidades. Uma batalha Pessoana entre o querer e o não querer, que acabou por ser transversal a muitas outras coisas – política, religião ou amor – ao qual estava sempre associado um lado céptico. “O importante era o fazer”.
Quanto à política em Pessoa, trata-se para Zenith de “um assunto complicado”. Se existe alguma contradição entre os heterónimos, Zenith defende que se assistiu a “uma certa evolução nas suas ideias”, apesar de Pessoa ter tido tanto os seus tempos de “republicano muito entusiasta” – antes de ter ficado desiludido com uma “república algo disfuncional” – como de monarquista alternativo – “Acreditava numa monarquia não hereditária”, algo de que só um poeta se teria lembrado. Zenith falou das ideias algo reaccionárias que Pessoa tinha por volta de 1920. “Achava que a democracia não podia funcionar. Detestava o comunismo e o socialismo. Mas também o fascismo. Amigos seus fundaram um jornal assumidamente fascista, chamado “Portugal”, mas Pessoa recusou o convite. Nunca acreditou em Mussolini”, apesar do efeito de encantamento que parecia ter sobre muitos intelectuais de então.
Entrando no período que antecedeu a longa ditadura em que viveu Portugal, Richard Zenith considera que “Pessoa deu o benefício da dúvida aos primeiros tempos da ditadura civil, vinda da ditadura militar. Com o Estado Novo, em 1935, tornou-se fortemente anti-salazarista”. Faltou a uma entrega de um prémio, esteve contra o projecto-lei para abolir as sociedades secretas – que é como quem diz a maçonaria -, escreveu poemas contra Salazar e foi vítima da censura.
Quanto à escrita e ao método, Pessoa “escrevia por impulsos e de uma maneira pouco organizada. O eu era revelado na sua obra mas de forma distorcida. É um fingidor, sempre. Como uma criança que recusou tornar-se adulta, em ter família ou um trabalho com horas certas. De certa forma, acreditava nos seus heterónimos. Uma brincadeira levada muito a sério, mas sempre uma brincadeira”.
Nas intervenções do público, depois de um périplo astrológico, Richard Zenith falou das dúvidas que teve quando se entregou à escrita da biografia “Sobre Pessoa”, publicada em Portugal pela Quetzal após a versão inglesa ter saído um ano antes, questionando-se “se conseguiria fazer uma obra de jeito”. Uma obra onde quis evitar a chatice e o academismo, e que acabou por se esticar dos dois anos de trabalho para os doze. A opção acabou por ser a da linha cronológica, tentando mostrar de que forma temas como o amor, a política e a religião se iam entrelaçando na vida e obra de Pessoa. Em suma, deixando espaço “para os leitores interpretarem a própria vida de Pessoa”.
Desafiado pelo poeta Renato Filipe Cardoso a falar do ensino de Fernando Pessoa nas escolas, Zenith mencionou “o ênfase excessivo da “Mensagem”. Alberto Caeiro e Álvaro de Campos seriam uma porta de entrada melhor. Os problemas existenciais de Campos e a ideia de Caeiro de que as coisas são como são poderiam entusiasmar mais os jovens. A “Mensagem” poderia ficar para um segundo momento”.
Foi também Renato, em jeito de brincadeira, que convidou Richard Zenith a falar da estátua de Pessoa no Café A Brasileira, ou de todo o merchandising gerado a partir da sua discreta figura. Estátua que, quando foi colocada, trouxe consigo “o horror dos Pessoanos”, mas que para Zenith é algo “simpático”. Quanto a toda a parafernália comercial, considera que “ensina mal que Pessoa é uma espécie de estrela pop. Tenho pena que muitas pessoas falem de Pessoa mas poucas o leiam realmente. “Sobre Pessoa” fala muito da literatura de Pessoa, e também de heterónimos seus menos conhecidos. Quis levar os leitores a lerem mais Pessoa, isso é o que interessa”. Que o Desassossego esteja sempre connosco, acrescentamos por aqui.
Fotos: Luísa Velez
Sem Comentários