Quebrando o mutismo de onze anos de Jonhathan Safran Foer, “Aqui estou” (Alfaguara, 2018) surge como um romance impactante, repleto de histórias agitadas e conflitos entre as raízes e a evolução de uma família e de um povo: os Bloch, judeus, com membros e perspectivas dicotómicas entre a fidelidade à luta em Israel e a sobrevivência nos Estados Unidos.
O direito a reivindicar uma pátria e um núcleo de identidade familiar, os limites da luta pela sua preservação, os vazios de poder e a necessidade de serem redesenhadas novas fronteiras. Através da família, da religião, da tradição e do conflito, Safran Foer desbrava caminhos complexos de intimidade e identidade. A identidade dos Bloch que, sem disso se aperceberem, evoluíram e alienaram-se; a identidade de um povo que, persistindo na defesa da sua sobrevivência e hegemonia, cobra compromissos e gera desconfortos que, ao invés de serem mobilizadores, originam planos de fuga e de evitamento. Ao longo de quase setecentas páginas, o trajecto é de sobrevivência e de libertação do círculo vicioso de ambições, medos, cobranças e fugas.
“Quando começou a destruição de Israel, Isaac Bloch ponderava se se devia matar ou mudar-se para o lar judaico. (…) Os horticultores alemães tinham podado a árvore de família de Isaac até ao solo da Galícia de onde brotara. Mas com sorte e intuição e sem qualquer ajuda dos céus, transplantara as suas raízes para os passeios de Washington, DC, e vivera o suficiente para ver novos ramos crescer.”
Jacob e Tamir, um judeu israelita e outro judeu americano, respectivamente, escalpelizam perspectivas e argumentos quanto ao valor e defesa da tradição, da religião e do valor da entrega à defesa de Israel. Onde é que faz mais sentido ou é mais relevante? Na luta armada, cujo fim se antecipa com facilidade, ou na sobrevivência em paragens mais tranquilas, lutando através da perpetuação da identidade de um povo através da sua história, hábitos, valores e sonhos? A narrativa permite tomar contacto e ponderar com a ameaça de colapso de um povo, de uma nação e de gerações sem perspectiva. Os refugiados, os conflitos bélicos, as catástrofes naturais, as doenças e as mortes, a escassez de tudo o que é indispensável à sobrevivência e à preservação da dignidade.
Israel e os judeus surgem retratados como um povo traumatizado. Também Jacob e Julia se entregam ao ressentimento e à frustração de uma vida diferente do que almejaram. O que havia de errado em procurar uma vida boa, ser tão ético e ambicioso quanto as circunstâncias o permitissem, sem a sacrificar por nada. Uma certeza: o trauma tem o poder de deformar a mente e a coração.
“A diferença entre conceder e aceitar é a depressão”. A vida familiar de Julia e Jacob passou a ser caracterizada por processos, negociações intermináveis e pequenos ajustes que os afastaram da intimidade. O seu foco passou a ser a funcionalidade do grupo, as decisões urgentes para que aquela roda andante, composta pelos cuidados aos três filhos, aos pais e aos compromissos extra, não bloqueasse. Se tal acontecesse, talvez os forçasse a observarem-se e a constatarem o inevitável, que o sentido da cadência e a emoção do processo estavam inequivocamente comprometidos, sem sentido. Mantê-la em movimento era manterem-se vivos, lutar pela sobrevivência de um sonho. Julia passou a observar os outros e a questionar-se como seria caso cedesse ao desejo de experimentar, de sair de si e da rotina que a afogava; Jacob entregou-se ao deleite do imaginário, à conquista fácil de um espaço de divagação e enleio, uma intimidade não concretizada mas explorada ao limite nas redes sociais, com um salto de desespero para um universo vazio de pudor e de convenções, envolto em desejos e fantasias. Ambos, Julia e Jacob, passaram a querer-se e a repudiar-se, a sentirem-se peões num jogo que já não desejavam. Agora era aguentar, aguentar sem perspectiva, percebendo que, quando se corre atrás da felicidade, foge-se da satisfação.
“Como haviam conseguido passar os últimos dezasseis anos a desaprender-se um do outro?”. Por fim, Jacob e Julia procuram a felicidade que não tenha que ser à custa um do outro. Decidem correr o risco de viver a vida errada em vez de morrer a morte errada, pondo fim à cegueira voluntária e ao entorpecimento. Ambos queriam viver livres sem se livrar das suas vidas, evitando continuar a pisar campos minados de fantasia e (des)honestidade.
“Aqui estou” é uma viagem intemporal à intimidade de uma família e de um povo, carregada de intenção, sensualidade e comoção, de vidas marcadas por sulcos profundos, vincos e pregas. Verdadeiros signos do tempo.
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