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Ao Paraíso, Hanya Yanagihara, Deus Me Livro, Crítica, Editorial Presença
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“Ao Paraíso” | Hanya Yanagihara

Por Pedro Miguel Silva · Em 13/12/2024

Depois de “Uma Pequena Vida”, um livro perturbador, intenso, mas ao mesmo tempo belo e catártico sobre a amizade – que obrigou a gastar vários pacotes de lenços durante a sua leitura -, Hanya Yanagihara partiu para um projecto ainda mais ambicioso: “Ao Paraíso” (Editorial Presença, 2023), romance de fôlego épico que atravessa três séculos, recriando a condição humana naquilo que já foi feito e no que poderemos sonhar em construir juntos.

Washington Square, 1893. Na família Bingham, na falta de comunicação entre os três irmãos – John, David e Eden -, o avô é a cola que tudo une, mais do que qualquer pulsão sanguínea. Quando surge a discórdia sobre a herança que o avô propõe, Mister David, a quem competia aprovar os pagamentos da firma, dá por si a rememorar os “vários indivíduos e causas” que, no seu todo e segundo ele, contam a história da sua família: “a resistência no Sul; as iniciativas de caridade para dar um tecto aos refugiados e promover o seu reencontro; a luta pela educação dos negros; as organizações que se ocupavam das crianças abandonadas ou negligenciadas, e outras que promoviam a alfabetização das massas urrantes de imigrantes pobres que chegavam diariamente por mar; e aqueles com quem alguns Bingham se cruzara e que de alguma maneira o tinham marcado, daí que fossem ajudados”.

São tempos em que o casamento gay parece ser comum nesta geografia – os netos suspeitam que o próprio avô mantém um relacionamento de décadas, apesar de nunca assumido -, mas onde os casamentos arranjados são uma prática comum. David, um velho muito antes do devido tempo, dá por si numa combinação arranjada pelo avô – com o corpulento Charles Griffith -, mas dá por si “a retribuir a honradez com crueldade”, desenvolvendo uma curiosidade apaixonada por Edward Bishop, um pobretanas professor de música.

Nesta primeira parte, onde Nova Iorque é um estado-livrense e a escravatura uma prática tolerada, somos apresentados aos oito estados-membros dos Estados Livres, alguns deles com leis anti-sodomia, encontrando a primeira referência à Utopia que, tal como o Paraíso do título, se inscreve em cada um dos andamentos do romance.

O segundo andamento decorre em 1993, onde viajamos até uma Manhattan que enfrenta o pesadelo da Sida. O narrador é David, “um jovem auxiliar jurídico”, amante em segredo de Charles, o sócio principal da empresa onde ambos trabalham. Segundo a tradição havaiana, David recebeu o nome de Kawika, acabando por se tornar “alguém que apenas ansiava ser amado e cuidado, alguém que apenas queria seguir instruções”. David renega a tradição, não tendo mostrado particular incómodo com a “anexação” do Hawai como o 50º estado norte-americano, recusando cantar as canções que lhe foram ensinadas, a dançar as histórias que aprendera a dançar ou a recitar a História que havia aprendido – até ao dia em que decide fazê-lo, questionando toda a sua existência e a dos que o rodeiam.

Neste capítulo-romance, como que numa reverberação de “Uma Pequena Vida”, estão presentes a solidão, as agruras da existência, a inaptidão social, o sentimento de falhanço ou uma interrogação sobre o que deixamos ao mundo como legado individual.

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O terceiro e longo andamento, que ocupa praticamente metade do livro, divide-se em dez partes, num jogo de avanços e recuos que vai de 2093 a 2088. Um andamento que nos remete quase automaticamente para os tempos do confinamento, e para uma ideia do que poderá um dia acontecer quando o mundo se tornar um lugar mais inóspito. Vive-se um racionamento severo, à base de cupões, onde a carne de cavalo, cão ou guaxinim passaram a fazer parte da ementa de muito boa gente. As rusgas são uma questão e a água é racionada, num estado policial que vigia uma sociedade abalada por sucessivas e simultâneas epidemias. Uma sociedade na qual não existem nomes próprios, e onde a espaços acontecem vagas de extermínio, seja de animais ou humanos, à menor suspeita de infecção. A narradora trabalha no estudo preditivo da gripe, mergulhada num casamento pouco feliz com um marido que esconde vários segredos.

Nesta sinfonia final, na qual Hanya Yanagihara esclarece e baralha o leitor em doses equilibradas, aborda-se o papel subserviente que tem sido reservado à mulher, a vulnerabilidade humana, o poder tentacular dos estados e as ameaças várias às liberdades individuais. Um livro desafiante e provocador, que convida cada um a sair da sua bolha e a enfrentar o mundo lá fora. Não foi fácil, mas Hanya Yanagihara abriu-nos as portas do paraíso.

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Pedro Miguel Silva

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