A descrição de uma metrópole agitada, onde os mercados vendem produtos de terras distantes, pode ser facilmente associada ao mundo moderno. Porém, é na China do ano 1000 que se situa a cidade que Valerie Hansen caracteriza no início do seu mais recente livro, intitulado “Ano 1000: O Verdadeiro Início da Globalização” (Ideias de Ler, 2020).
Por volta deste ano, o desenvolvimento da agricultura conduziu a um aumento da produção de tal ordem, que permitiu não só um crescimento populacional, como também a acumulação de um excedente que podia ser comercializado. Perante o aumento do comércio, algumas pessoas trocaram o trabalho agrícola pela produção de outros bens para venda, ou pela vida de mercadores. Em consequência, surgiram rotas comerciais que permitiram que bens, tecnologias, religiões, pessoas e micróbios percorressem longas distâncias para além do seu lugar de origem, desencadeando mudanças profundas, nas quais a autora reconhece um fenómeno de globalização, que afectou tanto monarcas como os mais pobres dos seus súbditos.
Recorrendo a fontes escritas e vestígios arqueológicos, Hansen dá a volta ao mundo, seguindo pistas deixadas pelo trajecto de vários bens comerciais e analisando o tipo de pessoas e de informações que os acompanhavam. A viagem começa com o desembarque de exploradores viquingues num território que hoje pertence ao Canadá, o que inaugurou uma rota entre as Américas e a Europa, que já estava ligada à Ásia e a África. Desta forma, “pela primeira vez na história mundial, um objecto ou uma mensagem podiam viajar para qualquer parte do mundo“.
Segue-se a descrição da rede pan-americana de estradas, que ligava o norte e o sul desse continente séculos antes da chegada de Colombo, bem como dos eventos que ocorreram na Europa de Leste, na Ásia e em África. À luz desta narrativa, as viagens de navegadores como Vasco da Gama tiveram o mérito, segundo a perspectiva europeia, de eliminar intermediários comerciais, mas não foram totalmente inovadoras, na medida em que exploraram rotas marítimas já utilizadas regularmente por marinheiros de outros continentes.
Como é característico da globalização, o transporte de mercadorias desencadeou a deslocação de povos, pois artífices e mercadores iam ao encontro dos seus novos clientes, constituindo comunidades de emigrantes que nem sempre eram bem vistas pelos nativos. Os conhecimentos e as ideias também circulavam, aparecendo pela primeira vez livros que explicavam aos seus leitores os costumes de outros povos. Esses movimentos eram influenciados pelo contexto político, o qual podia determinar, por exemplo, a conversão de um governante à religião de vizinhos poderosos, na tentativa de obter aliados, o que provocou uma diminuição no número de religiões.
Gradualmente, as pessoas deixaram de ter uma identidade marcada apenas pela geografia e começaram a identificar-se com grupos mais vastos de seres humanos com afinidades culturais e religiosas, o que constituiu mais um passo crucial na globalização.
Obviamente, houve neste processo vencedores e vencidos. A autora traça paralelismos interessantes entre a situação actual e as exigências da vida na economia globalizada de outrora, incluindo os desafios do contacto com outros povos. O resultado é, mais do que a reconstituição fascinante de uma época, uma leitura estimulante que desafia o que julgamos saber e reorienta a nossa perspectiva do mundo.
Sem Comentários