Comecemos com um apontamento biográfico sobre a autora, a antígua-americana Jamaica Kincaid. Considerada uma das maiores vozes da cultura anglo-saxónica, Kincaid encontra-se traduzida para mais de vinte idiomas e é considerada uma das escritoras mais influentes da literatura actual nos EUA, repetidas vezes apontada como candidata ao Nobel da literatura. Entretanto, têm sido vários os prémios que a reconhecem como autora de uma obra rebelde e robusta, que lida com questões como a relação entre memória e identidade, o legado colonial e as relações familiares. Igualmente conhecida pelo foco que os seus romances colocam nas relações mãe-filha, admitindo que se inspiram nos problemas do relacionamento com a sua mãe, Kincaid emprega um estilo literário poético, com ritmo, que a tornam mestre na caracterização e na narração.
Jamaica Kincaid nasceu Elaine Potter Richardson, em Antígua, em 1949. Em 1965, com dezasseis anos, foi enviada pela família para Nova Iorque para tomar conta de crianças em casa de uma família rica. Rebelou-se e nunca mandou dinheiro para casa, pois queria estudar e ser escritora. Fê-lo e chegou a redactora da revista New Yorker, entre 1974 a 1996. Em 1983, publica o seu primeiro livro de contos, não mais deixando desde então. Na astualidade, mantém-se também ligada à Universidade de Harvard.
“Annie John” (Alfaguara, 2024), o seu romance de estreia surgido em 1985 – e agora publicado em Portugal pela Alfaguara -, é prenhe daquilo que seria uma das características mais notadas na sua obra: a esperança e o otimismo, estados presentes na sua infância, afetados pelo complicado relacionamento com a sua mãe e, mais tarde, renovados quando passou a controlar as escolhas que ditaram o seu futuro.
Entre os dez anos e a adolescência, Annie John, filha única, procura encontrar o seu verdadeiro eu, enfrentando obstáculos que a levarão a descobrir com quem pode contar. Criança feliz na infância, profundamente ligada à família, segura de si na caminhada que inicia na escola e na relação com os outros, começa a comparar-se com outras jovens, a invejar a liberdade e o despojo de quem está menos coartada pelas convenções, a envolver-se em comportamentos de ensaio e de transgressão, criando um mundo só seu onde têm lugar pequenas mentiras e a descoberta de uma individualidade que a confunde. No confronto com a censura dos adultos, onde inclui a desilusão por perceber quão distante está da mãe, com a qual até há pouco mantivera uma relação umbilical, debate-se com os laivos de uma identidade desenraizada, passando a examinar criticamente o mundo à sua volta. Começa a sentir a insatisfação perante a intolerância dos adultos e a ignorância da maioria das outras jovens, que não a conseguem acompanhar na sua ânsia de descoberta. Em ambas as dimensões, Annie John procura a emancipação e a realização dos seus sonhos, o que Kincaid tão habilmente desenvolve fazendo uso de expressões emocionais abertas, que ajudam o leitor a perceber o ciclo auto-destrutivo da personagem e a sua procura de libertação.
No final, fica a convicção do potencial por trás de vivencias traumáticas, da inegável arte da autora de converter a falta de amor por parte da mãe em amor próprio, de quebrar o determinismo de dependência com uma atitude não compassiva, que contraria profecias e transforma a zanga e o inconformismo em algo positivo.
Sem Comentários